Se me perguntassem o que realmente funciona nesse país, diria sem pestanejar: as capelinhas. Para quem anda meio desligado, esse é o nome dado ao movimento religioso que promove o rodízio de imagens da Virgem Maria nos lares católicos. É um verdadeiro milagre: Maria acomodada numa caixinha de madeira de no máximo dois quilos circula durante um mês por 30 famílias, 24 horas em cada uma. Os próprios donos da casa ficam encarregados de no dia seguinte bater palmas na porta do vizinho, rezar uma Ave-Maria e fazer o repasse da santa, sem quebrar a corrente jamais. Via de regra, aproveitam para colocar a conversa em dia, ritual extra-religioso que responde por parte do sucesso do sistema. No mais, é esperar a fila andar. A Virgem sempre volta.
Tem sido assim nos últimos 120 anos, desde que o missionário claretiano José Maria Santistevan decidiu criar, em Guayaquil, no Equador, uma espécie de "visita circulante da Madre de Cristo". Pegou. Em Curitiba, a prática chegou em 1937 por obra e graça de outro claretiano, padre Roberto Peres, que trabalhava na Paróquia do Imaculado Coração de Maria, na Praça Ouvidor Pardinho. Logo a onda se espalhou pelos pinheirais, promovendo entre os reservadíssimos habitantes do Primeiro Planalto não só a reza do terço, mas a arte de prosear no muro, para surpresa dos incrédulos.
Pode-se afirmar com cálculos tão seguros quanto os do Ipardes que o movimento das capelinhas é um assombro estatístico. Só na Arquidiocese de Curitiba são 10 mil boxes equipados com Nossa Senhora, um minúsculo cofre para donativos e uma lista de participantes. Como cada um desses minissantuários circula em 30 residências, a legião de capelinhas da Mitra atinge 30 mil famílias. Se cada família for multiplicada por cinco média de residentes por domicílio, aleluia, tem-se a multidão: 150 mil pessoas, incluindo os menos piedosos que porventura dividam o mesmo teto com marianos devotados. Ao ver na mesa da sala a bela lapinha com as portinholas abertas, não custa nada dar um alô. Os anjos dizem amém.
Para não dizer que só falei das flores, há filas de espera para se inscrever nas capelinhas S/A. Além de quê, vez ou outra, a entrega atrasa. Tem de dar busca. Os motivos são nobres sabe-se das donas de casa que seqüestram a imagem para se desdobrar em rezas enquanto suas crias fazem vestibular na UFPR. E das que com medo de ladrão principalmente quando descem até Matinhos na temporada empregam a Mãe de Jesus como segurança particular.
Mesmo assim, os organizadores das capelinhas deveriam dar consultorias em Brasília. Em mais de um século de circulação ininterrupta o sistema apresentou raríssimas baixas, vandalismos ou profanações. É barato, sustentável e baseado na lealdade dos participantes como há muito não se via. No máximo, alguém vira evangélico e manda riscar seu nome do caderninho. Ainda assim, sai no lucro aquele vizinho que parecia de pouca conversa permanece um boa-praça e, quem sabe, uma referência num futuro crediário.
Em tempo
Há 19 anos, a professora Educação Física e de francês Yara Schwarz, 70, é responsável pelas capelinhas da Arquidiocese de Curitiba. Não se trata de um Fidel Castro com terço na mão. A aposentada ora é reeleita ora é convidada pelo arcebispo a permanecer no posto o que obedece de bom grado.
Quando chegou em Curitiba, vinda de Rio Negro, Yara encontrou no movimento um modo de se entrosar com a comunidade da Vila Izabel onde mora. Sua rua no bairro, inclusive, virou um entreposto para pobres e desvalidos que descobrem viver ali uma mulher caridosa. O telefone não pára de tocar. "Vó, é sobre as capelinhas." Até o marido, Jaime, entrou na dança. "É o meu São Cristóvão", brinca, sobre o samaritano que a leva cada dia numa das 170 paróquias que monitora.
Com Yara, as capelinhas perderam o cheiro de naftalina. Tradicional reduto de senhoras de idade, as mensageiras, o movimento conta hoje com 500 homens na função. Também existem jovens organizando as andanças da Virgem. No Pinheirinho há uma voluntária na flor de seus 17 anos. Ao conhecê-la, a líder teve a certeza de estar fazendo a coisa certa. E se mandou feliz da vida para sua aula de tai chi chuan. Valei-me Deus e Nossa Senhora.
José Carlos Fernandes é jornalista.



