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Passeando com minha mulher e minhas filhas pela Boca Maldita, entre bandos de mortos-vivos, algo me faz lembrar de Aarão, o vilão shakespeariano. Um homem que desenterrava cadáveres frescos e os reconduzia, de madrugada, do cemitério à casa de seus familiares enlutados. Ali, ele os largava, à espera da manhã, não sem antes gravar um recado à faca, no peito dos defuntos: “Não deixem esta dor morrer”.

Sim, há uma dor inscrita em cada um de nós, e que só florescerá no dia de nossa dispersão. É o que me sugerem os zumbis de Curitiba. O corpo é também o seu avesso, o escuro dentro dele, a engrenagem intocada. Reconhecer e brincar com isso pode se tornar um prazer, mas não deixa de ser uma triste libertação, a antítese de qualquer carnaval. Afinal, ninguém aqui está disposto a dar adeus a carne alguma.

É a festa da carniça ambulante. As crianças às vezes riem, às vezes se enrijecem. Volta e meia sinto a minha mais velha me apertar a mão com força. Algumas caracterizações, admito, são de um realismo empobrecedor, que flerta com uma agressividade sóbria, fora de propósito. A caçula no meu colo até finge não ter medo, mas acaba se rendendo, e aí balbucia no ouvido do pai: casa, casa, casa.

O corpo é também o seu avesso, o escuro dentro dele, a engrenagem intocada

A pequena cansou, vamos embora, os quatro contra a correnteza. Curitiba é um desfile de finados foliões. No caminho, porém, uma moça corcunda nos chama a atenção, se destaca em meio à desanimação coletiva, contagiante. Não, não se trata de uma prótese, sua corcunda é real, e resplende ao meio-dia, entre as alças de um vestido simples. Mas não, ela não está celebrando nada, está só de passagem.

A moça manca, seu passo é duro, os braços não dobram, mal se movem, pendem retos junto aos flancos. Sua máscara é o próprio rosto paralisado. Todo o seu organismo obedece a uma ordem cruel de inflexibilidade. Pendurada ao pescoço, uma cartolina se balança. Ela nos informa sobre a vida e os problemas da mulher que a exibe.

Distraída, outra moça, bela e ensanguentada, vestida de noiva, se aproxima num trote infantil. Freia no susto, e por pouco não se choca com a corcunda, cuja rigidez a impressiona. A noivinha, porém, não compreende bem o que vê, e por isso analisa a outra apenas tecnicamente, como faria a juíza de um concurso de fantasias.

São três, talvez quatro segundos de incompreensão. O entendimento chega logo, e a boca da noiva começa a se abrir, devagar, anunciando uma breve suspensão da ação dramática. Inaugura-se aí um instante nebuloso, em que nada parece acontecer, mas que, na verdade, faz-se ironicamente vital, pois é neste intervalo que os olhos da noiva, despreparados, se aprontam para o choro, e seu coração se inclina à ruptura.

Quando o tempo, enfim, volta a avançar, a noiva explode e se expande. Abraça a moça diante dela, se agarra à sua corcunda como se fizesse questão de tomá-la para si, de fundir-se àquela desconhecida. Chora. Ambas as mulheres choram e se enlaçam, longamente. Quando se largam, enxugam as lágrimas uma da outra, trocam palavras que não ouço, e partem, essa para a Osório, aquela para a Estação Central. Cada qual marcha rumo ao seu futuro. Dois destinos que, na hora inadiável da apoteose, não deixarão de ser o mesmo.

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