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Às vezes, me perguntam por que chamo a Santos Dumont de Pracinha do Amor. Trata-se de um capricho de cronista, respondo, mas é também uma teimosia apurada, com fundamento. Para começar, deixo claro que o nome não é uma invenção minha, e sim uma lembrança recolhida em meus plantões de repórter, na virada do milênio, quando, por diferentes razões, precisei entrevistar o povo que trabalhava na noite da Cruz Machado ou da Saldanha Marinho.

Na época, a Santos Dumont era um jardim de azaleias, uma formação providencial de arbustos altos, biombos naturais. Atrás deles, várias categorias de notívagos se entregavam a todo tipo de prática mais ou menos ilícita, protegidos apenas pela sombra da folhagem. Atracavam-se no escuro, em meio às flores, apesar do sereno e de outros perigos, entre um gole de vinho de garrafão e uma tragada de maconha, num logradouro onde se temperavam as tentações mais sublimes com a pimenta da imprudência. Misto de motel, paraíso e labirinto, veio daí o singelo apelido popular.

E Santos Dumont, como ficava? Garanto: nenhuma das mil almas que se escondiam entre as moitas da praça jamais pensou em homenagear, com suas danças e libações, a pobre figura do pai da aviação — que, aliás, só veio a frequentar a festa há bem poucos anos, convertido em triste busto de argila.

Hoje, nos degraus que ligam a Pracinha do Amor à calçada da Saldanha, uma pichação em vermelho se apaga sob os nossos passos. Ela diz "Praça do Petardo". É, decerto, a nova alcunha do local, sinal dos tempos, agressão que me recuso a aceitar, embora admita que, nesta corrida sem pódio que é a civilização, os violentos sempre mantiveram a dianteira, voltas à frente do bloco dos mansos.

Paciência. Não estou aqui para desestimulá-los a competir, e sim convidá-los a visitar a Pracinha, agora mesmo, à luz reveladora do verão. Esqueçamos as madrugadas de ontem. Algo restou daquele epíteto romântico nesta atmosfera pesada e, por isso, insisto em sua denominação antiga, este achado genial de algum anônimo, perdido entre a ingenuidade e a ironia. Os canteiros hoje são baixos e as flores, rasteiras; não há mais paredões ou paliçadas vegetais, mas, mesmo assim, os namorados, aqui, teimam em crescer e se multiplicar.

Na Pracinha, estudam-se, beijam-se, amam-se homens e mulheres de todos os gostos, e a qualquer hora do dia, não obstante a chuva de fogo e enxofre que cai sem trégua sobre eles, incendiando as tipuanas imunes de corte, queimando as tirivas, os sabiás e os chupins que, em chamas, voejam ao nosso redor.

E o cheiro da Pracinha do Amor? Idêntico ao de uma fossa. Os doidos acendem seus cachimbos de lata, arrancam as pedras do calçamento e, com elas, erigem latrinas onde se aliviam à vista e às narinas de todos. E nem mesmo essa companhia, ou a névoa das drogas mais baratas, ou a catinga dos pombos esfumaçados, é capaz de espantar os casais que tremem ao sol do meio-dia. Deitam-se na grama entre cacos de vidro, preservativos descartados às pressas, garrafas e peitos partidos, e nada os demove de sua missão amorosa.

Santos Dumont, em sua indiscutível grandeza, que me perdoe. Aqui se ergueu sua pálida efígie, aqui admiramos seu chapéu acidentado, seu olhar deprimido sobre o mundo dos amantes. Mas não é dele esta praça, não exclusivamente. Ela é, antes, de todos nós, as almas na moita, pequenas estátuas de sal que, a cada relâmpago mais azulado, olhamos para trás, para nossa história e para os sonhos inflamáveis do passado, na esperança de sermos enfim consumidos pela ira de um deus que, dizem, também é amor.

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