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Nenê no colo, meio da manhã, ando pela sala. A menina tomou banho e agora precisa dormir, tenho que preparar o almoço, já planejei tudo. Minha outra filha está na biblioteca, entretida com a lição de Matemática. Hoje é dia de números decrescentes, não tem segredo, basta escrevê-los todos, de 100 para baixo, algo simples como a vida, uma contagem regressiva.

Por ora a casa está quieta, mas sei que, quando a menina chegar ao 1, fechará o caderno e virá para cá, bagunceira. Corro contra o relógio, o nenê a meio caminho de um sonho, não há tempo a perder. Ao menos as janelas do apartamento novo são amplas, gosto de caminhar ao longo delas enquanto acalento a caçula. Vou e volto de uma parede a outra, um bicho enjaulado, a sala ainda sem móveis. Lá fora é uma selva de distrações, meus olhos vão do Passeio Público ao HC, do Círculo Militar ao Colégio Estadual, do Palácio de Cristal aos olhos do nenê. Ainda abertos.

Ao redor das duas amigas, o futuro se agita feito um mar encapelado

No terraço de um prédio próximo, avisto duas moças sentadas, os ombros unidos, debaixo de uma sombrinha vermelha. O sol é forte, como suportam o calor? Imagino que sejam muito novas, daqui é difícil dizer, mas se vestem como meninas, tênis coloridos e shortinhos curtos, as quatro coxas em paralelo, resplandecentes, mais nítidas que seus rostos à sombra. Dividem um baseado, inconfundível o ritual dos gestos, a comunhão pelo fumo, a pinça delicada dos dedos. A fumaça as preenche devagar, entra e se demora lá dentro, e quando sai se transforma em grandes bolas roladas pela brisa, iluminadas de amarelo, um dia lindo de lindas perspectivas.

Assim coladas, entre o riso e o relaxamento, as duas são um monumento à amizade, são a própria juventude sobre um rochedo. Ao seu redor, o futuro se agita feito um mar encapelado. Em breve elas irão navegá-lo, mas hoje não. Hoje é dia de praia em Curitiba.

O nenê dormiu e vai para o berço, é hora de fazer o almoço. Estou preocupado com a comida, com as contas, a louça, o destino do país e de minhas filhas. No terraço, as meninas tomam água fresca numa garrafa azul. Apagam o baseado e o guardam na caixinha de fósforos. Três garças sobrevoam nossos prédios, as asas imóveis, origamis sobre a cidade, quem os dobrou? Passam poucos metros acima da sombrinha das moças, e penso que, ao vê-las, as aves devem apreciá-las sem desconfiança, e até confundi-las com uma imensa flor brotada no concreto.

Vou à cozinha e corto tomates, pico três dentes de alho, duas cebolas, refogo tudo, lavo o manjericão. Um molho trivial para o espaguete. Enquanto a água esquenta, o tempo vira. Tudo fica nublado, começa a chover, o vento assobia. Volto à sala, esperando encontrar o terraço vazio, mas não, as meninas ainda estão lá. Fecharam a sombrinha e deitaram sob a chuva fraca, vão se encharcando aos poucos. Cochilam, e talvez sonhem, como o nenê que acabei de ninar.

Minha filha mais velha aparece, caderno na mão. Quer que eu corrija a tarefa, está ótima, parabéns, agora vá arrumar sua mochila. Ela vai, bate uma porta, a irmãzinha chora, a água ferve, é meio-dia, o molho pronto, descubro que não há macarrão em casa, mas tudo bem. Nossa contagem regressiva está só começando.

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