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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

A novidade é que um alarme passou a disparar, direto, em algum ponto da quadra onde moro, aqui no Centro. Sei lá de onde vem, só sei que dispara a qualquer hora do dia ou da noite. Toca por um minuto, 30 segundos, às vezes mais, às vezes menos. Aí alguém, uma mão invisível, o desliga e estamos salvos, até ele disparar de novo.

É, sem dúvida, um alarme defeituoso. Ou não? A vizinhança tem debatido o caso apaixonadamente. Quem o aciona? Um morador, ao chegar bêbado em casa? Pode ser. Ou então um porteiro sonolento, um zelador vingativo. Um morcego ao redor do sensor. Um rato, um trovão, um pombo. Talvez até um ladrão, tudo é possível.

A ideia por trás de um alarme, vocês sabem, é simples. Ele nos alerta sobre potenciais invasores. Por isso, sempre que o ouvimos, temos um sobressalto. Pulamos da cama, engasgamos com o café, escorregamos no banho. É nosso corpo que reage, antes mesmo da inteligência e da memória. No fim, lembramos: calma, é só este alarme aqui da Ébano Pereira, um alarme habituado a mentir, um alarme que grita lobo.

Um alarme nos alerta sobre potenciais invasores. Por isso, sempre que o ouvimos, temos um sobressalto

Assim, após semanas de escândalo, é natural que parte da vizinhança já tenha abandonado a civilidade. Normal, está na própria raiz da palavra alarme, um substantivo que nos convoca às armas, à agressividade. O mesmo acontece, reparem, com os telefones, as buzinas, os despertadores. Eles nos ligam e enfezam.

De madrugada, portanto, o alarme tem levado um monte de gente irritada às janelas. Querem ver de onde vem o barulho, identificar o culpado por aquela perturbação, a polícia já avisou que não vem se não tiver um endereço, uma pista, um suspeito. Aliás, este é o único momento em que se pode avistar gente às janelas, hoje em dia. É como se o alarme fosse um toque não de recolher, mas de exibir-se, vociferando nas soleiras.

E aí começa o festival de sombras. O povo abre persianas e vidraças, põe a cara para fora e projeta, entre os prédios, toda a sua indignação, sua capacidade de odiar a injustiça. No início, o que mais se ouvia eram imperativos simples, advertências diretas, desliguem esse alarme, estou avisando! Depois, tais avisos floresceram, tornaram-se cachos de interjeições e impropérios, ganharam colorido, viraram palavrões perfumosos, adjetivos atirados a destinatários incertos, endereçados a quem interessar possa, e por remetentes outrora pacatos, sociáveis.

Ignoro que força é essa que nos faz gritar à noite coisas que mal temos coragem de sussurrar de manhã, diante do espelho. Desconhecemos a origem do alarme da Ébano, mas estamos prontos, a faca nos dentes, podem vir. Não sabemos quem é o responsável por esta sirene, qual o seu sentido ou seu defeito, e por que ninguém a conserta. De que vale um alarme falso, afinal?

Pois um vizinho meu, que não quis se identificar, me sugeriu uma hipótese, querendo vê-la publicada. Diz ele que este alarme, na verdade, é uma ilusão. Assim como nada está acontecendo de fato, ninguém o aciona. Não há perigo ou ameaça real. Ou melhor: quem o aciona somos nós, a distância, e sem querer. É nosso medidor de paranoia. Nosso ódio é um bicho exigente e, às vezes, quando a fome é grande, precisamos de um alimentador automático.

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