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É o fim da tarde de um dia útil, e desço do táxi com minha filha mais velha. Viemos visitar seus avós no Capão Raso. Muito sério, passa por nós um rapaz, mochila preta nas costas. Ele acaba de sair da firma onde trabalha e, sonhador, se dirige à faculdade noturna. Ou pelo menos é essa a minha primeira leitura do seu personagem. Sigo atrás dele, vamos para o mesmo lado, e a menina, que não tem escolha, vai comigo, pendurada no meu braço. Enfeitada de caveirinhas, sua mochila rosa anuncia à natureza que representamos, ela e eu, algum tipo de perigo.

Sim, na rua, é preciso enganar os predadores. Poucos passos adiante, por exemplo, uma fera já se apresenta ao combate. É um homem suspeito, caminhando no sentido contrário ao nosso, e estamos atentos a ele. Mas o rapaz da mochila escura, distraído, não nota a sua aproximação. Segue sonhando com o futuro, planejando a escaleta de seus sucessos. O cabelo com gel, a barba feita, a camisa listrada por dentro da calça jeans, discretos sapatênis — é o visual que escolheu para ir ao encontro de seu destino. Traz uma aliança na mão direita e, talvez por isso, por estar pensando na noiva, tenha assumido certo aspecto núbil de presa.

Assim fica fácil para o homem suspeito. Ao cruzar com o rapaz, ele o golpeia com violência no rosto, sem qualquer hesitação, motivo ou aviso. É uma agressão sonora, e o som da pancada, apesar de apavorante, é até gostoso de ouvir, uma mistura de tiro de espoleta e cascalho pisoteado. O agredido não tem chance de se defender nem tempo de sentir dor. Entre a raiva e a estupefação, ele se recompõe como pode, e logo investe contra o seu agressor.

Não, não há vitória possível, só comédia e vergonha

Só que não o ataca com os punhos, e sim com as armas morais de que dispõe, os músculos da integridade. Sujeito honesto, seu combustível é o sacrifício, e tudo o que consegue fazer é revidar com palavras pouco poderosas, clichês como “vadio” e “vagabundo”, somados àquela grave admoestação curitibana: “Vá trabalhar!”

O agressor, é claro, não vai. É quase um artista admirando sua obra: um cidadão transformado. Vermelho, o lado esquerdo do rosto de sua vítima já dá sinais de que vai inchar. O sangue do moço correu imediatamente às suas porções ofendidas, e um de seus olhos, agora mau, lembra uma brasa se apagando. O rapaz se partiu em dois hemisférios irreconciliáveis, tornou-se um homem de duas caras.

Minha filha, com medo mais da reação do agredido que da marra do agressor, se esconde sob as asas do pai, e me sinto uma galinha de desenho animado. A cena toda ganha um estranho colorido de cartum, e o povo, à porta dos comércios, ri daquele rapaz de bochecha inchada, forçado a brigar em público com um louco de praça. Não, não há vitória possível, só comédia e vergonha, e até os carros e biarticulados que passam por nós buzinam para ele, como se dessem risotas.

O agressor se afasta, tranquilo, e a última imagem que nos oferece de si mesmo é a de sua retaguarda desguarnecida: a calça lasseada e a bunda nua, exalando confiança. O agredido, furioso, ainda esbraveja. Discute com os populares ao redor, buscando o apoio de seus semelhantes: “Não dá vontade de matar um vagabundo desses?”

Não, diz o pessoal, deixe pra lá. Não esquente, esse doido é assim mesmo, faz isso com todos. É só um maluco, e não exatamente um vadio, e vai que este é o trabalho dele, o seu dom, sua vocação e especialidade? Nasceu para dar na cara de seus irmãos, esculpir suas almas, remodelar a pedra de nosso caráter.

Mas o rapaz, não tendo com quem dividir sua indignação, tornou-se o homem mais solitário do mundo. Sua grande esperança é ser compreendido pela noiva.

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