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Passo a madrugada ouvindo gritos. Isso não é novidade no Centro de Curitiba, é notícia velha. Faz mais de uma década que deixei de reagir aos pedidos de socorro que ouço no meio da noite. Já nem desperto direito, escuto tudo durante os sonhos. Antes não: eu saltava da cama, abria a janela, corria até a sala, saía ao terraço. Um herói na garoa fina, o vento gelado, e lá embaixo sempre a mesma cena. Os pedidos de socorro se transformando, primeiro, numa troca de tapas e, depois, em beijos, risadas, uivos de celebração. Só mais um casal engatado e tudo bem, amanhã tem mais, a paixão às vezes é assim, assusta, faz a gente gritar "acudam".

Mas amanhece, e a cidade vive uma estranha hora de silêncio, um vácuo entre os turnos. Os carros tunados já sumiram, as brigas emudeceram, os travestis foram dormir e os bêbados viraram pó, só um ou outro infeliz restou apagado debaixo das marquises. O grosso da população diurna ainda não apareceu. Estão todos em trânsito, sonolentos como o sol curitibano, ainda tímido, naquela indecisão diária, será que já é hora de brilhar, e brilhar pra quê?

Saio comprar pão no momento mais fresco do dia e, numa esquina aqui perto, encontro a moça com o jato d’água. Está sempre lá. Ela desliga o aparelho para eu passar, num misto de educação e impaciência. Eu digo obrigado, ela sorri quieta. Me afasto depressa, não quero atrapalhar, seu trabalho já é tão duro. Ela espera um pouco e volta a acionar sua máquina de limpeza. Tudo vira uma enxurrada suja.

É como ela começa o seu longo expediente, lavando da calçada as sobras noturnas. Não é preciso se esforçar muito para saber do que se trata. Dejetos de toda a espécie, secreções, expectativas em cacos. O mau cheiro é a regra, sempre presente, forte. E também uma ou duas manchas de sangue, às vezes bem grandes. Sei que aquilo não vazou de ferimento grave, nada de facada, muito menos tiro, é soco mesmo. É o que a noite cobra de seus funcionários: um nariz, um dente, um supercílio.

Há também os ovos quebrados. As cascas no calçamento, as gemas que não vingaram. É a munição preferida dos agressores de travestis. Passam de automóvel e dão cem voltas na quadra, besouros presos num barbante. Na cama, sonho e escuto suas gargalhadas, o berro das buzinas, os pneus cantando. E depois a resposta irada dos ofendidos, graves ameaças, todas vazias. No fundo, ninguém aqui pode nada.

Quer dizer, talvez a moça possa. Ao menos faz o possível. Chega cedo ao trabalho, sabe-se lá a que horas levantou, quando tomou café, partiu para o ponto de ônibus. Não sei se deixou os filhos na creche, ou com a mãe, a avó. Sei que usa aliança na mão esquerda e que, antes de sair de casa, achou tempo para se produzir. Um batom escuro, a sombra rosada. O cabelo preso num coque de bailarina, os brincos de argola favorecendo o pescoço comprido. Ficou bom. Tudo isso ela arranjou diante de um espelho, não sei onde. Talvez até se perfume, mas não dá para saber, só se eu a cumprimentasse com um beijo.

À noite, imagino que volte para sua família, veja tevê, converse com os filhos, faça planos com o marido. Pode ser que more longe, estude para um concurso. E vá dormir no exato momento em que a esquina, aqui do lado, começa a ser repovoada. A calçada ainda brilhando, pronta para outra, parecendo um rio de prata, cada pedra portuguesa uma estrela caída, uma passarela para os astros das horas mortas. Que a usem como quiserem, feito cama, ringue ou vitrine. De madrugada, enquanto a moça dorme, eu velo. Ouço a música, o choro, o riso, os rogos de seus clientes aqui na rua. É para eles que ela, secretamente, trabalha.

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