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Na Ivo Leão, há uma ponte. Debaixo dela não corre água, e sim o trânsito da Nicolau Maeder. Não deixa de ser um rio. Numa de suas margens, ao lado do cemitério, se ergue uma cerejeira. Na outra, num trecho de rua sem saída, um alfeneiro.

O alfeneiro pende para o chão, arcado pelas ervas-de-passarinho, e o negro-azulado de suas bagas reforça a sua sombra. Apetitoso, atrai inúmeras aves à sua órbita escura, em especial os pombos, da mesma cor de seus cachos. O reflexo roxo de sua copa, aliás, instala ao seu redor uma penumbra sinistra, embora convidativa. E não importa se o dia é fechado ou de muito sol, o alfeneiro sempre me lembra uma nuvem de tempestade pousada na terra.

O alfeneiro sempre me lembra uma nuvem de tempestade pousada na terra

Apesar de soturno, o alfeneiro é um ímã. É para lá que vai o povo, na agonia comezinha da micção, mirar o muro pichado que a árvore acarinha, banheiro e palimpsesto público onde tudo se escreve e reescreve, e com as mais variadas tintas. É ali, sob suas bênçãos, que se acoplam os casais de namorados, de diversas vertentes e igualmente afoitos, na fé de aliviar outras urgências. Escoram os troncos tesos no tronco duro do alfeneiro, e se roçam uns nos outros, numa ânsia de serrote, pele contra caule, osso e madeira, seiva mais saliva, inaugurando tortas geometrias, formas improvisadas de amor, perfeitos triângulos panteístas.

Em torno do alfeneiro, repartem-se o prêmio dos furtos, o lanche dos garis, o barato dos baseados, a paranoia dos cachimbos. Quando a roda é de maconha, há uma vibração displicente entre os fumantes, um amigo passando ao próximo o fogo de seus segredos, e aí até o alfeneiro parece congraçar-se, tratado pelo grupo como um irmão protetor. Se a ciranda é de crack, o clima muda, e a lata que se traga e se esfrega é quase uma lâmpada maravilhosa. Em vez de estimular desejos, porém, esta os monopoliza.

E a cerejeira, enquanto isso? Tão perto e tão distante. Linda, ramos ascendentes, florida em demasia, um acinte às outras espécies da rua. Seria solitária não fossem as nossas vaidades, essa mania de demarcar território, inventar modas e casos, maquiar a cara dos dias. Pois, se os passarinhos desprezam a cerejeira, não o fazem certas moças e rapazes, tão belos quanto ela. Sacam os celulares e, com sanha pornográfica, fotografam o seu rosado, as flores emoldurando seus rostos — não ficam uns defuntos sorridentes? Ah, e são milhares de sorrisos, polegares para cima, bocas e beijos sensuais, do Alto da Glória para o mundo. Sim, a cerejeira da ponte da Ivo Leão é uma árvore que se envia, voa e viaja.

Pobre alfeneiro. Não é modelo nem cenário. É encosto, banco, biombo, balcão, motel. Cresceu na calçada, suas raízes revirando pedras, fazendo força, promovendo a bagunça. Sortuda, a cerejeira cresceu na grama, embora sua beleza, que azar, esteja condenada à vigília. A beleza jamais descansa, e a cerejeira ainda conta com a luz de um poste, coladinho a ela. Ele a ilumina madrugada afora, não a deixa dormir nem relaxar de suas graças.

Ao menos o alfeneiro dorme. Dorme e sonha estar lá, na outra margem do rio de asfalto, trançando galhos com a cerejeira. Eu sonharia.

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