
Manhã de neblina, postes acesos. Duas moças invadem a Pracinha do Amor, animadas por uma alegria mútua, infantil. É fácil adivinhar que não dormiram. Barulhentas, só consigo vê-las quando descem a escada da Saldanha Marinho, duas manequins contra a névoa, as roupas de guerra insuficientes para a batalha contra o frio. Elas não ligam, são fontes ambulantes de calor, estrelas no gelo seco.
Não me veem aqui, quieto. Não estão programadas para registrar outra presença humana. Cada uma vai para um canto da praça, tiram os sapatos e se ajoelham no chão sujo, gelado. Não se importam com a grama úmida ou os cacos de vidro no calçamento. Apenas caçam alguma miudeza ali, entre o capim crescido e a raiz das tipuanas, cuidando para não ferir as mudinhas nos canteiros.
De cara, penso em grana. Devem ter largado algum dinheiro na área. Mas vai que estão atrás de um cachimbo, uma pedra guardada para mais tarde? É claro que pode ser algo bem menos dramático, um anel, ou um brinco de valor afetivo sumido numa briga boba, horas antes. Ou quem sabe documentos, um celular, uma anotação, um batom?
São jovens, sim, mas até ontem eram meninos. Chegaram à cidade faz pouco tempo, não mais que dois anos. Não sou um especialista em sotaques, mas estes são do interior do Paraná, não perguntem a região. Seus corpos, mesmo duros, não perderam certa suavidade de curvas, própria dos adolescentes, mas já desenvolveram seios, cintura, quadris. Não sei o quanto ali é obra dos hormônios ou do silicone. Uma ruiva, a outra loura, seus cabelos longos, tão bonitos, a vida louca ainda não pôde estragar.
De repente, um novo sujeito, de boné, aparece. Ele se assusta ao encontrá-las de quatro, a atenção presa ao solo. Apesar da neblina, logo as reconhece e se aproxima, curioso: "Ei, o que é que as duas estão procurando aí, enlouqueceram?" A ruiva o identifica pelo ardido da voz, e diz com naturalidade: "Um louva-a-deus, querido".
O homem se espanta, procurando um louva-a-deus, pra quê? Ninguém responde e ele não insiste, dá bom-dia e manda beijos a todos, até a mim, este espião de banco de praça. Exausto de tentar compreender aquela dupla, o cara some na névoa, melhor deixá-las pra lá, todos temos amizades enigmáticas.
Mas o que querem com um louva-a-deus? Decerto são supersticiosas, e aquela diligência deve envolver algum interesse amoroso, um feitiço de vingança. Já ouvi dizer que receber visita de louva-a-deus em casa traz boa sorte, mas caçá-lo é outra história, talvez o mesmo que procurar um trevo de quatro folhas.
De repente, as moças desistem da tarefa. É como se ambas tivessem, simultaneamente, se livrado dos efeitos de uma bebedeira. Lúcidas, calçam os sapatos e vão descansar no banco diante do meu, é a madrugada cobrando seu preço. Acendem um cigarro, e a fumaça se mistura à cerração.
A ruiva lamenta o fracasso das buscas: em Curitiba, ela só vê barata, quem lhe dera um louva-a-deus. E conta que sua mãe, querendo adivinhar sexo de criança ainda na barriga, prendia um desses bichos entre os dedos e lhe assoprava a cara. Se ele tentasse voar, era menino; se se acomodasse, era menina.
A loura se diverte: "E o que fez o louva-a-deus quando sua mãe estava grávida de você?" Mas a ruiva se anuvia, não faz ideia, nunca lhe contaram. A outra, para não perder a amiga para a tristeza, muda de assunto e até de inseto: "Sabe do que eu tenho saudade? Vaga-lume".
Aí, sim, recuperada de alguma lembrança ruim, a ruiva ri. Os postes se apagam e a neblina se desfaz para ouvi-la dizer, a fronte acesa:
"Pois amanhã, meu amor, eu juro: vou brilhar a noite toda, só pra você."
Luís Henrique Pellanda é escritor, e também publica crônicas no blog Asa de Sereia (asadesereia.wordpress.com)
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