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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Um olho no homem que fala no palco, outro na telinha do celular. O tema é ótimo, mas o conferencista não faz milagre. E seria preciso um milagre para reter a atenção de um cérebro hiperativo, hiperestimulado pela conexão permanente com o mundo via internet. A cena se desenvolve mais ou menos da forma que relato a seguir:

"Procurei, através do conhecimento da correspondência do velho ironista com seus amigos, ver melhor os sentimentos afetivos e até meigos daquele que foi apontado e fichado pela crítica biográfica como um cético, um pessimista, até mesmo misantropo, que pela sua obra de ficcionista parecia não acreditar na bondade humana."

Ninguém me vê, não tem ninguém sentado ao meu lado. Que dó, um público tão pequeno para ouvir falar de um grande escritor! Acho que dá para eu mandar uma mensagem para o Rafael.

– Encontrei aquele pão integral que você gosta.

– Comprou? Te pago depois.

"...amava a espécie, mas se aborrecia com o indivíduo."

Frase boa. Vou anotar. Amava a espécie, mas se aborrecia com o indivíduo. Aliás, essa frase não se aplica a quase todo mundo? Uns 50% dos homens e mulheres amam a espécie humana e outros 50% a odeiam. Todos se aborrecem com o indivíduo.

– Rafa, a moça da padaria disse que aquele pão se chama broa, que é assim o nome dele aqui.

– Broa, na minha terra, só a broinha de fubá mimoso.

– Essa é outra, por aqui broa é o nome do pão escuro. Coisa de alemão, acho.

"...que ele se torna o filósofo e o psicólogo amável e indulgente."

Até que a conferência não é ruim. Mas cheguei atrasada. Ainda bem que tem o celular para me distrair.

"Tolerante por índole e vocação, cada vez mais reduzindo o seu círculo de amizades, conservou, entretanto, um grupo mais íntimo, para o qual mostrou sempre as reservas do seu coração afetivo, talvez em contradição com a sua própria obra."

– Minha mãe foi embora muito brava. Acho que não volta mais.

– Claro que volta, Rafa. Vai dar tudo certo.

"...lamentava que o Rio, sua cidade natal, se renovasse. O que me parece é que não era tanto a saudade do Rio antigo que ele conheceu, mas a tristeza de uma mocidade que ele ia perdendo com esse mesmo Rio antigo.

– Rafa, o cara está dizendo umas coisas que lembram meu pai. Rafa, você está aí?

– Estou, é que também estou vendo o jogo na tevê. Que foi?

– O homem na conferência matou a charada sobre o meu pai.

– Ele sabe por que seu pai é reclamão?

– Eu anotei aqui, depois te mostro, mas tem a ver com a mocidade perdida. Por isso que ele reclama o tempo todo da cidade, do país. De nós.

– Mas eu também reclamo da cidade, do país e de nós.

– É diferente, Rafa. Meu pai compara tudo o tempo todo com a mocidade perdida dele, que não tem volta. É isso! Eu sabia, o Machado de Assis sabe tudo mesmo.

(Os trechos entre aspas são de entrevista dada pelo jornalista baiano Manoel Paulo Filho ao jornal Folha de S.Paulo em setembro de 1958, quando se recordava os 50 anos da morte de Machado de Assis. Manoel Paulo Filho antecipou o que diria em uma conferência no dia seguinte, na Biblioteca Pública de São Paulo.)

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