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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Por acaso me deparei com a palavra "consciencioso". Quem a usava era Machado de Assis, em um texto sobre Eça de Queiroz. Parei, meio surpresa, meio confusa. Consciencioso – minha mãe usava esse adjetivo. Só ela, mais ninguém que eu conheça, nem autor que eu costume ler. Até encontrar esse texto de Machado de Assis.

Minha mãe era uma pessoa conscienciosa ("regido pela consciência; honesto, responsável, cuidadoso", segundo a definição do Houaiss). Machado de Assis também. Deduzo isso de sua biografia. Nasceu em família humilde, mulato em um país escravocrata, frequentou pouco a escola e cresceu intelectualmente como autodidata, foi um funcionário público sério; não se tem notícia de que tenha sido encrenqueiro ou desonesto. Se alguém merece ser chamado de gênio da raça, é Machado. Ele devia saber disso, e mesmo assim levou sua vida com discrição e elegância. Porque era consciencioso, tenho certeza. Minha mãe, preciso explicar, vive, mas o Alzheimer não deixa que use aquele talento que a natureza lhe deu e que ela aperfeiçoou para ser "honesta, responsável, cuidadosa". Por isso, no início deste parágrafo, usei o verbo no passado. Digo que ela era conscienciosa, apesar de ainda estar aqui.

A doença de minha mãe provoca situações perturbadoras, como podem testemunhar familiares de portadores de Alzheimer e de outros males com sintomas semelhantes. É perturbador sentir saudades. Sinto saudades apesar de poder vê-la quando quiser. Outro dia, passando pela Avenida Batel de automóvel, vi uma senhora caminhando na calçada que me lembrou de minha mãe. Por um segundo tive a impressão de que era ela que estava ali, caminhando em busca do sol, como o médico recomendou que fizesse.

A visão da senhora da Batel despertou em meu cérebro a capacidade de recuperar com clareza imagens da minha mãe antes da doença. Ali, dentro do carro, consegui trazer à tona visões tão claras que era como se ela estivesse diante de meus olhos. De um lado, a possibilidade de gerar essa lembrança vívida é uma chance preciosa de viajar no tempo. Por outro lado, é forte demais. Torna-se triste.

Com o passar do tempo, e vencido o susto que o vórtice de memória provoca, talvez seja possível desfrutar esses momentos em que as lembranças voltam nítidas. Estou tentando ser otimista.

Um amigo me contou que sempre vê seus mortos circulando pelas ruas. Falou com naturalidade e não se referia a fantasmas, mas às confusões que seu cérebro produz por um segundo ao confundir um passante com o conhecido já falecido, ainda que na aparência dos dois houvesse apenas uma vaga semelhança. Quanto mais mortos tivermos na nossa vida, mais "fantasmas" veremos. As ruas estão cheias deles.

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