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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

As meninas enterram em um canto do quintal o corpinho do pássaro que bateu na vidraça. Insatisfeitas com o montinho de terra, que não é túmulo digno para uma criatura tão delicada, cravam no solo uma cruz feita com varetas amarradas com um capim. O pai aparece, observa a cena e avisa que cruzes não devem ser usadas com bichos. Não foi uma reprimenda, foi uma orientação que fazia sentido para ele, católico das antigas. Mas, talvez aos meus ouvidos hipersensíveis a tudo que vinha do pai, soou como uma bronca, porque não esqueci jamais.

Lembro da cena e da passagem do meu pai pelo quintal em um dia de semana, quando escapou do trabalho por alguns minutos, como costumava fazer. Ele era gerente da agência bancária de uma cidade do interior e morávamos no fundo do prédio, por isso ele às vezes aparecia em casa no meio do dia. Para fazer o quê? Não lembro. Contar uma história para minha mãe, tomar um café, olhar os filhos talvez.

O pai – o meu e todos os pais – se relaciona com a casa de forma diferente das mulheres. O envolvimento das mulheres com a casa é orgânico, epidérmico. Elas olham em volta, vigiam, calculam, testam possibilidades, tocam. Os homens circulam, utilizam e agem – como diria um comandante militar – de forma cirúrgica. Troca-se lâmpadas, conserta-se torneiras, planta-se algo no quintal. Na hora que lhes convém. Antes e depois, não se pensa naquilo.

Pai não passa horas arrumando armários e gavetas, algo que parece fundamental para as mulheres. Talvez seja porque os pais guardam menos objetos ou não se importam com os objetos dos outros. Sabendo onde encontrar o que lhes interessa, consideram a situação sob controle.

Quais as partes da casa que interessam ao pai? Um sofá só para ele, onde lê seu jornal e sua revista e onde vê tevê – era assim com meu pai. Agora, um canto confortável para usar o computador. Os pais modernos devem ter mais necessidades materiais do que os antigos tinham, devem juntar mais tralha em casa. Porque hoje todo mundo que tem algum dinheiro consome demais, compra demais, sejam eletrônicos ou ferramentas para usar em casa. Os pais modernos devem ter muito mais gavetas do que tinha meu pai (pelo que me lembro, ele usava uma só, para guardar papéis).

O pai precisa de espaços externos. Um quintal onde possa manter uma pequena horta, um jardim que cubra de plantas variadas (nada de canteirinhos minimalistas, que isso é coisa de mulher). Uma chácara! Os pais adoram chácaras, casas de praia, pescarias, barcos. Um dia, cansam de tudo isso, é verdade. Mas, até lá, terão consumido um pouco dessa energia masculina que precisa viver al fresco. Já terão se orgulhado dos limões que colheram, terão presenteado orgulhosamente os parentes com os ovos que recolheram, servido o peixe que pescaram, ouvido elogios ao jardim que cultivaram.

Aqueles apartamentos com churrasqueiras nas varandas foram feitos para acalmar os pais sem quintal ou jardim?

São necessidades ancestrais do provedor, daquele humano encarregado de perscrutar o ambiente em busca de alimento. De dominar a natureza para torná-la segura para sua prole. Prole que a mãe cuida em outro nível, cozinhando o alimento para torná-lo agradável, mantendo a higiene dos filhotes, protegendo-os tanto das feras quanto da minhoca que eles teimam em colocar na boca.

Essa divisão tão definida de papéis não faz mais sentido, não é? Não mesmo. Vivemos em um ambiente em que a distribuição de tarefas – e, consequentemente, a forma como nos colocamos no mundo – é difusa, libertária, até confusa. Isso é bom sob vários aspectos. Mas também é bom que o homem tenha seu jeito de ser e a mulher, o dela. Há uma atenção aos detalhes de que só a mãe é capaz. Há uma beleza pura e concreta que só no pai podemos admirar.

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