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Brigas de vizinhos às vezes viram notícia de jornal. Veja o caso do senhor Lee.

Bill Lee é um americano de 84 anos que vive em uma brownstone (aqueles sobrados típicos de Nova York) no Brooklyn. Ele é um músico de jazz respeitado, que toca bateria e piano. Gravou com Bob Dylan e Aretha Franklin, para citar apenas dois nomes mais vistosos. Há 45 anos naquele endereço, ele ensaia e compõe em casa. Na hora em que a inspiração aparece, o senhor Lee toca. Isso pode ser depois das 10 da noite.

O som que vem do apartamento não foi um problema por quatro décadas. Mas, nos últimos anos, a região em que ele vive se valorizou e pessoas "de fora" se instalaram lá. Uma delas, vizinha do senhor Lee, chama a polícia cada vez que ele começa a tocar depois das 10 da noite.

Seria mais uma briga de vizinhos por causa de barulho, não fossem as circunstâncias: (a) Bill Lee é um músico profissional, que vive e toca no mesmo endereço há quase meio século, e sua vizinha é recém-chegada; (b) ele é pai do diretor de cinema Spike Lee, que reclamou em público da situação; (c) o caso é um exemplo dos conflitos trazidos pela gentrificação das cidades.

Essa palavra não existe oficialmente em português, vem do inglês gentrification, que dá para traduzir (ao pé da letra) como "tornar nobre". É quando um bairro passa por um processo de valorização imobiliária, ganha um novo comércio e novas moradias, tudo mais caro, o que acaba por afastar os antigos moradores e atrair outros, mais endinheirados. Isso é bom? Isso é ruim? Há quem veja prós e há quem veja contras. A família Lee, lá no Brooklyn, só vê contras.

A própria definição do que é esse enobrecimento de áreas das cidades mostra os dois pontos de vista. Gentrificação são "as dinâmicas de desvalorização e revalorização das cidades" e também é "a descaracterização das comunidades locais". Ambas as definições eu emprestei do jornal português O Público.

Você deve ter visto isso acontecer em algum lugar perto de você. Talvez até esteja acontecendo no seu bairro, agora. No meu, está. O bairro quase rural, de casas simples, sem asfalto nem calçadas, vai sendo ocupado por grandes condomínios de alto padrão. Junto pode ser que venham a calçada e o asfalto, mas se vão a paisagem que me atraiu para lá, os bichos silvestres que apareciam no quintal. Vão-se os quintais.

Eu mesma não nasci naquele lugar. Não sou um dos descendentes dos imigrantes que montaram sítios por ali. Cheguei há 15 anos. Se eu cheguei, outros não têm o direito de "chegar" também? É isso que torna o debate mais interessante.

Spike Lee, que foi acusado de racismo por reclamar dos "brancos endinheirados" que se instalaram na vizinhança de seu pai depois que o lugar se tornou chique e que exigem troca de hábitos, respondeu o seguinte: "Acho que todos têm o direito de viver onde quiserem. Mas quando alguém muda para um bairro tem de ter algum respeito pela sua história, pela sua cultura. (...) Sejam humildes. Não cheguem dizendo ‘agora estamos aqui e as coisas têm de ser assim’. Isso é uma loucura".

Em uma situação mais pontual, mais específica, pode-se até esperar que uma pessoa que se muda para um novo bairro seja humilde e respeite os hábitos locais. Mas no conjunto da cidade, a mudança de perfil de um bairro ou de uma rua é avassaladora – não há espaço nas leis de mercado para a "humildade" pedida por Spike Lee. Em geral, a iniciativa privada é que toma a dianteira e é seguida pelo poder público, que reorganiza as vias públicas para acomodar a nova clientela. O que significa abrir ou alargar ruas e cortar praças. Se isso ocorre no mundo todo, no Brasil há a agravante de que o poder público é muito passivo e às vezes conivente com o mercado, se abstendo de defender a cidade de projetos que irão descaracterizá-la.

A transformação das cidades é fenômeno normal. Triste é quando ela traz melhorias para poucos e falsas melhorias para todos os outros.

A esposa de Bill Lee, Susan, resumiu com sabedoria o que indivíduos e empresas deveriam ter em mente quando se instalam em uma nova vizinhança. Ela disse ao The New York Times: "Você não se muda só para uma nova casa, você se muda para uma comunidade".

Está dito.

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