Não há como escapar do grande assunto. Por isso fujo (mas antes leio o noticiário de três jornais). Quando todos falam tão apaixonadamente sobre a mesma coisa, emudeço. Não sou dos que conseguem se fazer ouvir no meio do barulho. Sendo assim, traço ao acaso um plano de fuga.
Uma simples sessão de cinema se torna uma experiência insólita na noite em que o Brasil pega fogo. A distração banal ganha ares de novidade porque lá de fora vem o barulho das buzinas, das panelas. Para a fuga ser perfeita, a sala de cinema viaja no tempo. Janela Indiscreta tem 61 anos e exibe um corpinho de 25 (a idade que tinha Grace Kelly). A trilha sonora ininterrupta e barulhenta causa estranheza; os closes nos artistas, resquício do cinema mudo, causam estranheza. Melhor assim. Fugir dentro da vizinhança não tem graça. É preciso ter algo estranho no caminho. Pense em Alice, pense em Dorothy. Somewhere over the rainbow...
Nosso cérebro compõe músicas, embala danças e escreve contos porque a sua natureza exige
Outra rota de fuga chega em uma mensagem. Íris me convida a participar de uma troca de poemas. Tenho de repassar o convite para amigos e não quebrar a corrente. Corrente poética. Será? No dia seguinte, o Brasil ainda em chamas (e um dia lindo lá fora), me chegam os primeiros versos. Não é que as pessoas levaram a sério a ideia de trocar poemas?
Fernando Pessoa é um favorito. Merece. É um fingidor e finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. E vem mais Pessoa, ainda melhor: “Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade”. Eu também. Quem não?
Diz lá no livro que eu li: o que faz do ser humano esse animal poderoso que domina o planeta é a capacidade de abstração, de acreditar no que não se vê e não se toca, de pensar e criar em cima de elementos separados da realidade. Não fazemos só pão e armas. Fazemos poemas, orações, filmes e filosofia. Nosso cérebro, esse viciado em abstração, compõe músicas, embala danças e escreve contos porque a sua natureza exige. Para que servem a música e os contos? Para nada e para muito. Fugimos do cotidiano, do concreto, porque nossa condição humana pede, não porque sejamos covardes.
“Fugir sem ter razão para fugir é um ato libertador de covardia criativa. O medo é, tal como a preguiça e todas as espécies (sem distinção) de egoísmo, uma manifestação da mais elevada inteligência”. Palavras de outro português, Miguel Esteves Cardoso, em um daqueles textinhos que não servem para nada (como este aqui) e que não posso deixar de ler. Termina assim, em bom português lusitano: “Desliguem-se os telemóveis. Mudem-se as coordenadas. Confundam-se as tentativas de contacto. Fugir é cada vez mais difícil, mas é cada vez mais necessário”.
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A quem interessar possa: meu livro Quem vai cuidar dos nossos pais? (Ed. Record), que estava esgotado, ganhou uma edição de bolso e também saiu em e-book. O tema é a situação das pessoas que estão cuidando de um idoso.
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