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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

O sonho foi revelado aos poucos em conversas rápidas, enquanto a pia do apartamento 103 era desentupida ou o mosquiteiro era instalado na janela do 701. O rapaz, o faz-tudo do velho edifício, está economizando para pagar a autoescola. Tem em vista alguns trabalhos que vão lhe render um reforço de caixa. A pintura da casa de praia da síndica, a venda de alguns móveis que “herdou” do médico que morava sozinho na cobertura e faleceu na semana passada. Um a um, os condôminos vão tomando conhecimento do projeto. Como a maioria dos brasileiros, Olavo, o pintor-eletricista-encanador do Edifício Morro dos Pinheiros, sonha em se motorizar. Um automóvel facilitará as visitas aos cunhados, as idas ao supermercado, uma corrida de emergência ao posto de saúde. Ele tem se virado muito bem sem veículo próprio, mas um homem tem direito de sonhar, não é mesmo? Olavo quer um carro. Para dirigir, precisa fazer a autoescola e conseguir a carteira de motorista.

Alguns demoraram mais para pensar nisso, outros logo atentaram para o perigo iminente. Olavo bebe, toma todas, como se diz ali no boteco que frequenta. Depois do trabalho, passa duas ou três horas no bar, conversando com os amigos. Ele é bom de papo, é verdade, e molha bem a garganta enquanto conversa. Sai do boteco sério, tentando pisar firme e evitar os automóveis. Por que o sujeito alcoolizado tende a caminhar no asfalto e não na calçada? Pergunte para o Olavo, ele faz assim. Geralmente está aprumado o bastante para disfarçar a embriaguez. Só quem olha nos seus olhos percebe que está alterado. O olhar fica vazio, mortiço.

Se, pedestre alcoolizado, Olavo tende a caminhar no asfalto, será que como motorista alcoolizado vai dirigir em cima da calçada?

Tarde da noite é outra história. O doutor da cobertura, aquele que morreu, havia comentado que, de madrugada, cruzava com Olavo na rua e que este trançava as pernas. Os vizinhos não prestavam atenção no relato rápido enquanto o elevador subia porque estavam mais interessados mesmo na vida do doutor. De onde ele voltava de madrugada? Voltava sóbrio ou “mamado”?

Só que agora Olavo está prestes a se matricular na autoescola, Pelo menos é o que diz, o que pretende. Os moradores do Morro dos Pinheiros se deram conta do perigo. O rapaz boa-gente e habilidoso pode se transformar em um assassino. Se, pedestre alcoolizado, tende a caminhar no asfalto, será que como motorista alcoolizado vai dirigir em cima da calçada? Os vizinhos já imaginam as desgraças. Olavo atropelando velhinhos e crianças do bairro (“homicídio culposo”, dirá o advogado) ou arrebentando-se contra um poste. Morrendo.

Ninguém acredita que Olavo terá juízo e não dirigirá depois de beber. E bêbado consegue ter juízo? O pânico se instala.

Uma reunião de emergência é convocada pela síndica. Para disfarçar, a carta convocatória exibida no elevador diz: “Vamos discutir medidas de segurança pública com fundo humanitário”. A mais pura verdade. Pena que os moradores mais jovens não entenderam a linguagem metafórica e não compareceram, com exceção do casal do 205, aqueles que todos suspeitam ser black blocs.

A reunião transcorreu em clima sombrio. Todos preveem uma tragédia para Olavo assim que ele se sentar diante do volante do automóvel que ainda não comprou. Como desencorajá-lo? Cortar os trabalhos que passam para ele? Mas aí ele não terá como alimentar a família. Procurar os parentes do médico e pedir que não entreguem os velhos móveis para Olavo? Ele vai acabar ganhando dinheiro de outra forma. Interná-lo à força? Vai custar caro, muito caro. Convidá-lo para uma reunião dos alcoólatras anônimos? Quem tem coragem, se ele próprio não se vê como um alcoólatra... O militar que mora no segundo andar diz que é hora de “colocar nas mãos de Deus”. Para espanto geral, a suposta black bloc segue na mesma linha e afirma que irá rezar por Olavo. A síndica lava as mãos.

A velhinha miúda, que é cliente constante de Olavo e suas ferramentas, mostra-se mais corajosa que os demais e diz que vai chamá-lo para uma conversa e abrir o jogo. Fará um apelo, será enérgica, apelará para as previsões mais sombrias! Diante do olhar de admiração dos vizinhos, que sabem não ter peito para uma conversa franca com o rapaz, ela se inibe um pouco. Mas respira fundo e esclarece de onde tira toda essa bravura: “Não posso viver sem ele”.

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