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Começo a ver um documentário produzido pela BBC intitulado O Corpo Humano. Um cientista apresenta um bebê inglês de nome Charlotte e faz algumas projeções sobre a vida dela com base em estatísticas sobre homens e mulheres. O "aglomerado de substâncias químicas " – é assim que ele se refere a Charlotte – passará 3,6 anos de sua vida comendo, seis meses no banheiro, duas semanas beijando e fará sexo 2.580 vezes.

Minha primeira impressão foi a de que os seis meses de banheiro eram pouco para uma vida, mas comparados às duas semanas beijando, o semestre virou uma eternidade.

O cientista inglês prossegue com seus números e começo a me apavorar. Informa que provavelmente Charlotte terá oito bisnetos, sendo que apenas quatro deles lembrarão do nome dela. Já estou achando que é melhor tirar as crianças da sala. As informações estão ficando fortes demais: ele está dizendo que nem nossos bisnetos vão lembrar de nós! Antes que eu tenha tempo de jogar o documentário no lixo, um exercício rápido comigo mesma e com conhecidos prova que o inglês tem razão: os aglomerados de substâncias químicas esquecem rapidamente os que vieram antes deles. Ou, visto pelo ângulo inverso, seres humanos são rapidamente esquecidos pelos outros seres humanos.

A memória da nossa existência persiste entre os da nossa geração e os das gerações imediatamente anteriores e posteriores. Fora disso, caímos no buraco negro (diante da inevitabilidade do buraco, não seria o caso de perguntar por que nos cercamos de tanta pompa e circunstância? Não somos assim tão importantes, afinal).

Charlotte vai existir enquanto aqueles quatro bisnetos lembrarem dela. Depois, será a morte definitiva. Sim, porque enquanto alguém pensar nela, mesmo que de vez quando, ela ainda fará parte do jogo, ainda estará de certa forma presente no planeta Terra. Talvez até influenciando, por pouco que seja, a vida de alguém.

Fico imaginando a inglesinha Charlotte já crescida, vendo este documentário, que certamente os pais vão guardar com orgulho. Talvez ela fique chocada com a informação de que seus bisnetos vão esquecer dela e resolva tomar uma atitude. Deserdar todos assim que nascerem? Isso só iria piorar as coisas. Como, de forma geral, nós não somos muito bons para perceber sutilezas, para enxergar o outro além do óbvio ululante, acho que só restará a Charlotte o caminho de dar amor aos seus filhos, netos e bisnetos (se chegar a conhecê-los). Aquele amor desmedido, corajoso, sem vergonha e briguento que é capaz de grandes gestos de carinho e grandes broncas. Isso muda a vida das pessoas e, tenho para mim, que é por mudar a vida de alguém em um determinado momento que seremos lembrados. No mais, é aceitar o esquecimento e se empenhar para melhorar as estatísticas. Seis meses de banheiro e duas semanas de beijo, convenhamos, é uma vergonha, Charlotte.

Marleth Silva é jornalista.

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