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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Passei a semana pensando em comida. Culpa de um livro que li, A Cozinha das Escritoras, da italiana Stefania Aphel Barzini, que biografou dez escritoras através da relação de cada uma delas com a mesa. As escolhidas nasceram no fim do século 19 ou no começo do século 20. Eram todas, portanto, de um tempo anterior ao fast food, ao freezer e aos supermercados, o que faz toda a diferença. Os pratos eram sempre resultados de preparações demoradas, as compras tinham de ser feitas diariamente porque os alimentos precisavam ser consumidos frescos e de acordo com a estação. Morangos? Só na época certa – era preciso esperar por eles e desfrutá-los antes que desaparecessem dos quintais ou das quitandas. Passadas três estações, eles voltavam e era uma alegria. Era assim com os morangos, com o milho, com as uvas.

Que diferença isso fazia na relação das pessoas com o tempo! Todo o esforço humano para facilitar a sobrevivência também pode ser visto como um esforço para anular o tempo e seus efeitos. O maior deles, o mais temido e mais previsível, a morte. Para termos tudo o tempo todo, o tempo tem de ser um só. As estações do ano são anuladas. Teimosamente, o clima insiste em mudar, atrapalhando nossos planos de viver em um eterno hoje, perfeito e confortável (chato também, mas isso é outra história).

Quando lemos relatos de um século atrás, como estes que nos contam o que se passava na cozinha de Virginia Woolf, de Agatha Christie e de Colette, notamos o quanto já fomos longe na transformação do ato de cozinhar e do ato de comer. Mesmo durante a vida delas, as transformações foram enormes. A cozinha de qualquer residência no início do século, fosse na chique Londres de Virginia Woolf ou na fazenda africana de Karen Blixen, não era muito diferente da cozinha de uma casa de sítio brasileira. O que mudava eram as panelas e o livro de receitas. Era preciso fazer o fogo com lenha, trazer água de fora, lavar utensílios usando areia, já que não havia detergentes ("arear", como se dizia), guardar os "secos e molhados" na despensa, colher ou comprar diariamente os vegetais, abater os animais ou comprar a carne no açougue. A cozinha não era um lugar agradável e quem podia mantinha muitos empregados para poder evitá-la. Ao mesmo tempo, não se temia receitas demoradas, que ficavam horas no fogo, como um caldo feito com ossos que Karen Blixen amava e que exigia muito cozimento e filtragens sucessivas em pedaços de gaze. Tampouco se temia temperos em abundância, ovos, manteiga e creme de leite. A mesa de algumas das escritoras era uma orgia de creme de leite. Quanto mais gostavam de comida, mais creme de leite havia nos pratos.

As glutonas – Gertrude Stein, Agatha Christie e Colette – foram mais felizes. Comiam sem medo de engordar (e de fato engordaram muito) nem de morrer. Conta-se que Colette se irritou no velório de uma amiga da alta roda francesa, que não se alimentava para se manter magra. "Assim acabaremos todos, os mortos não devem deprimir os vivos. Não tenham medo da morte nem do pecado!", teria dito ela, que morreu aos 81 anos, depois de uma vida escandalosa e aventureira.

As que tinham mais problemas com comida, Virginia Woolf e Simone de Beauvoir, também tinham menos facilidade para desfrutar os outros prazeres da vida.

Cozinhar no universo daquelas mulheres era uma arte, um artesanato. A cozinha era um universo feminino – quando não era uma mão feminina que fazia o preparo, era um cérebro feminino que elaborava o cardápio e ditava as regras. Comer era um ato de sobrevivência e de prazer ao mesmo tempo. Não era um exercício afetado de sofisticação, como é a gastronomia destes primeiros anos do século 21. A cozinha é agora um espaço onde tudo é possível, porque há recursos, abundância de alimentos e tecnologia (sempre que possível, a comida chega pronta à casa). Cozinhar é chique quando não é necessário. Consequentemente, a cozinha virou um espaço para o pedantismo.

Aqueles pratos que cito lá em cima, no título da crônica, são alguns dos favoritos das escritoras. Anotei para provocar nosso apetite.

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