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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Falo ao telefone e, aos meus pés, o gato rola sobre as próprias costas. Tenta pegar o rabo. Bate no pé da mesa e inicia uma luta contra o comprido pedaço de madeira. Interrompo a conversa para narrar ao meu interlocutor o siricutico do felino. Do outro lado da linha, vem a voz da sabedoria: “Isso sim é que é importante”. E mais: “Precisamos disso para fazer a higiene mental”. Não foram bem essas as palavras dele, mas reproduzo aqui o sentido.

Fazia tempo que eu não ouvia falar de higiene mental, que agora me soa como uma explicação sensata para o sucesso dos vídeos de gatos na internet, dos programas humorísticos, dos joguinhos viciantes no computador e no celular. É a busca pela saúde mental em meio ao barulho, à balburdia informativa em que vivemos, ao consumismo que consome nossos dias. Boa parte dos recursos a que se recorre para a higiene mental tem efeito anestesiante, como uma droga. Usa-se para não pensar por alguns minutos ou horas. Não se sai melhor da experiência. É o caso das novelas, dos joguinhos digitais, do noticiário exaustivo sobre catástrofes (como a queda de um avião com um time de futebol). Eles são para a mente o que o fast-food é para o estômago: distrações artificiais que se sustentam no marketing das mídias eletrônicas.

Outra vertente da higiene mental é a das caminhadas, do futebol com os amigos, da jardinagem, da observação de gatos e cachorros, passarinhos e serelepes

Há outra vertente da higiene mental, a das caminhadas, do futebol com os amigos, da jardinagem, da observação de gatos e cachorros, passarinhos e serelepes. Da leitura, do cinema, da música. Da pescaria! – essa maravilhosa higiene mental feita em silêncio, em meio à natureza, quase uma meditação. Da meditação, da oração.

Sendo assim, observo o gato, que agora se prepara para dar o bote e capturar uma presa que só ele vê. Acerta a posição das patas traseiras – o que exige um reboladinho do bumbum empinado –, abaixa a cabeça bem no nível no chão. E salta. Age como um leão, uma onça, um tigre. Não sabe que não passa de um gatinho tricolor, jovem e estropiado. Numa tarde de sábado, enquanto eu esperava para ser atendida pela cabelereira, ele entrou berrando e deixando um rastro de sangue pelo chão branco. Choro de gato é uma coisa horrível. Teve cabelereiro que se escondeu atrás do cliente. O gato tinha acabado de ser atropelado. Foi assim que ele veio parar aqui em casa, onde recuperou os ossos quebrados, a pata ralada. O andar engraçado denuncia que o quadril não é mais o mesmo e metade do rabo perdeu a sensibilidade. Foi batizado de Boy, uma ironia com sua disfunção genética: só fêmeas são tricolores, mas ele é um macho de três cores, um ser raro que carrega nas células dois cromossomos X e um cromossomo Y.

Como para comprovar sua capacidade de nos proporcionar higiene mental, Boy reaparece na sala quando a vizinha desabafa sobre seus problemas. Indiferente ao drama familiar relatado ali no sofá, ele começa uma batalha contra a ponta do tapete. Desaparece embaixo da trama colorida, corre para fora, faz pose de fera, tenta morder. A vizinha interrompe a explicação sobre as decisões difíceis que tem de tomar e ri. “Fique com ele”, ela me aconselha. Convenhamos que é mais saudável que usar drogas ou tomar remédios.

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