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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Foi em um tempo em que a minha primavera começava em março. Em Londres, depois dos meses escuros e frios, o fim do inverno era um escândalo. Flores e folhas pareciam estar em todo lugar. Não que fossem muitas; é que durante meses elas haviam sido nenhuma.

Voltando da estação de metrô, no meu caminho de todo dia, notei o mato alto em frente a uma casa fechada. De uma hora para outra os arbustos estavam com mais de um metro de altura. Como 95% das casas inglesas, era um sobrado geminado com um pequeno recuo, sem muro. Em meio ao capim alto, vi pontos de cor, manchas amarelas. Eram os narcisos, flores que nascem de um bulbo e voltam todo ano com a primavera. Eles são uma fonte de inspiração infalível e sazonal para os poetas ingleses. “E então meu coração se enche de prazer e dança com os narcisos.”

Meu vasinho de narcisos amarelos deve ter me feito parecer muito mais subversiva do que eu jamais fui

Se não me inspirei a criar meus próprios versos, tive vontade de colher alguns para levar comigo. Não precisei invadir o jardinzinho abandonado. Peguei dois ou três narcisos que estavam perto da rua e rumei para casa. Ficaram lindos em um vasinho e causaram espanto na minha senhoria, ou landlady, como chamam por lá. Era uma moça um pouco mais velha que eu, que me perguntou onde eu os havia colhido. Na minha cabeça vaidosa, o espanto dela se devia ao meu gesto poético de colher flores amarelas na cidade grande.

Repeti a colheita mais uma ou duas vezes, uma coleta sempre modesta porque não queria avançar dentro do terreno.

Um dia, a alguns metros da casa, notei a porta abrindo. Reduzi o passo para observar. Saiu uma velhinha que aparentava uns cem anos, magrinha e um pouco curvada. Me chamou a atenção o sorriso no rosto e os olhos pregados no “jardim”. Ela olhava para o mato alto com ar de satisfação, como se visse canteiros bem cuidados. Devagarzinho, parou junto ao mato e continuou olhando com aqueles olhos sorridentes. Passei de cabeça baixa, temendo que ela tivesse me observado lá de dentro quando invadi sua propriedade com aquela cara de pau e ingenuidade tipicamente brasileiras.

Nunca mais colhi narcisos em lugar nenhum. Mas só agora, tantos anos depois, entendi o espanto da senhoria inglesa. Para ela, era óbvio que as flores tinham dono. Se estivessem em jardins públicos, eram da comunidade. Se estivessem em uma casa, mesmo que abandonada, eram do dono da casa. Se a casa fosse mal-assombrada, eram do fantasma. Em uma cidade, toda flor tem um dono.

Meu vasinho de narcisos amarelos deve ter me feito parecer muito mais subversiva do que eu jamais fui. Não passava de ingenuidade e de uma atração irresistível pela cor amarela.

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