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Não sei se é por causa da lua, mas há períodos em que quero morar numa chácara. Vivo uma dessas fases rurais. Pelo menos minha alma, que continua deitando raízes no solo da infância, está convicta de que somos, sim, habitantes do mundo agrário e cobra o retorno.

Começo então a procurar imóveis rurais. Brinco que quero uma chácara que produza prejuízo. Todos riem, pois sabem que eu poderia ganhar muitas medalhas como produtor de prejuízo. Boa parte de meu salário é gasto com coisas sem a menor utilidade no mundo dos homens práticos e tributáveis. Invisto, por exemplo, em livros. Livros que talvez nem tenha tempo de ler. Livros de poesia. Pois é, ainda compro livros de poesia, embora as pesquisas de consumo editorial digam que ninguém mais se interesse por eles.

No serviço, quando querem desqualificar minhas opiniões, há sempre um-profissional-de-uma-área-séria que parte para a agressão.

– O que aquele poeta pode entender disso?

Não vou argumentar que parei de fazer poesia – pois de fato não parei. Também não direi a meus detratores que minha poesia está completamente integrada ao real, à vida cotidiana. Poeta é sinônimo de sonhador. No nível simbólico, existo como um estereótipo, do qual não consigo fugir.

Então está correto que eu queira uma propriedade improdutiva. Não penso em plantar nada que possa ser vendido. Quero um pomar de árvores infrutíferas. Flores do campo que não sirvam nem para decorar um vaso doméstico. Um pôr-do-sol tingindo as vidraças de meu quarto. Coisas sem cotação no mercado. Poeta é mesmo tudo igual.

Poesia à parte, tenho procurado tal chácara. No começo, ia às imobiliárias e conversava com os vendedores. Descrevia o lugar que habitava meus sonhos. Tem que ter uma vista para o poente. Uma pequena mata. Se possível, um olhinho d’água sussurrante. Alguns vendedores me mostravam o que estava disponível. Propriedades com campos mecanizados. Piquetes para criar gado ou ovelhas. Açude ideal para instalar um pesque-pague. Pocilgas de alvenaria. Horta com sistema de irrigação. Edificações para a família e para o caseiro.

Não, eu quase gritava, não quero nada disso. Quero um céu azul, umas campinas verdes, alguns pinheiros no meio de um capãozinho de plantas silvestres, um lajeado onde eu possa colocar uma cadeira de praia e olhar o tráfego das nuvens. Umas porteiras carcomidas pelo tempo. E cercas com fios de arames enferrujados onde pousem pássaros – faço questão de que haja no mínimo um grupinho de pica-pau, pois gosto do som deles contra os troncos das árvores que crescerão em minha chácara.

– Trabalhamos com propriedades rurais e não com paisagens bucólicas – me disse um dos vendedores, interrompendo o atendimento.

Mas este não foi o corretor mais agressivo que encontrei. E sim um homem de gravata (vendedor de chácara usando gravata é uma coisa no mínimo inadequada) que, antes de mostrar as ofertas, foi direto ao assunto:

– Quanto o senhor pretende investir no imóvel?

Fiquei mudo. Ele tinha me desmascarado. Tratei de sair rápido da imobiliária dando uma desculpa qualquer, e desde então me dedico só aos cadernos de imóveis dos jornais. É que não tenho um centavo na conta bancária e não estou para receber nenhum dinheiro graúdo – e meu salário dá apenas para as despesas domésticas e livrescas. Como então comprar uma chácara?

Esta é uma preocupação que os homens de negócio devem ter. Não um poeta. O poeta sonha com o paraíso terreno. Com os horizontes rurais, com uma casa avarandada onde ele possa ruminar seus livros. Um poeta não se rende à realidade. Por isso, só os poetas são felizes.

Em um domingo desses, comprei os jornais e recortei vários anúncios de chácaras. Colei os recortes numa folha A4 e fiquei a manhã toda lendo as descrições. Algumas estavam mal redigidas, então corrigi, acrescentando coisas que o proprietário provavelmente esquecera de colocar. Depois do almoço, convidei a família para um passeio.

– Aonde vamos? – perguntou minha filha.

– Ver uma chácara que estou comprando.

Ela olhou com desconfiança para a mãe, mas não disse nada. Todos se arrumaram e saímos. Eu estava exultante. A região onde encontrara a chácara se chama Uvaia e fica às margens do rio Tibagi. Lembrei de uma frase que D. Pedro II escreveu no diário de sua visita ao Paraná: "Molhei a mão direita nas águas do Tibagi e trago lembrança de suas margens". Eu poderia fazer isso todos os dias, molhar as mãos nesse rio atemporal.

Fizemos um passeio de reconhecimento, vimos as chácaras da região, aprovando algumas construções e nos revoltando contra outras. Paramos um pouco no cemitério meio abandonado (que vontade de ser enterrado ali!), depois contornamos a igreja pelos fundos e vimos a nossa chácara. Para minha alegria, ela está colada ao pátio da igreja, onde há um parque em que nosso filho poderá brincar.

A chácara tem árvores centenárias, e uma casa de madeira quase caindo. Ótimo, digo para minha mulher. Derrubaremos para construir algo bem moderno. Não quero nada tipicamente rural. Mas uma construção com muito vidro e quase nenhuma madeira. Abro o portão, faço uma inspeção minuciosa no que pretendo implantar. Aqui um solário. Ali, as cadeiras e bancos. Um gazebo. Mais adiante um caramanchão com brincos-de-princesa.

Ouço a buzina. Minha filha ficou trancada no carro, ouvindo um CD de Amy Winehouse. Voltamos ainda com os olhos cheios não da chácara que encontramos mas daquela que imaginamos.

– Vou comprar – anuncio.

Entramos no carro e vamos até a beira do rio, onde alguns homens pescam. Novamente, apenas minha mulher e eu saímos, carregando no colo o nosso filho. Em poucos minutos, voltamos para o carro, depois de um ataque de borrachudos. Começamos a coçar desesperadamente nossos corpos cheios de pequenos calombos vermelhos.

Entramos no carro, ligamos o ar condicionado e voltamos para a civilização. Em casa, vejo que o carro está muito empoeirado. Pego a mangueira e o lavo. Depois, tomo um banho e vou ao shopping, onde compro mais um livro de poesia.

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