• Carregando...
 |
| Foto:

Um compartimento do armário aqui da biblioteca está apresentando muita umidade. Toda vez que o abro, vem o cheiro de mofo. Deixo uns produtos para desumidificação e, semanas de­­pois, a vasilha de plástico está cheia de água. O marceneiro já esteve estudando o caso e verificou que não há vazamento nem nada anormal.

Minha mulher diz que isso só acontece porque passo os dias trancado nesta catacumba, sem abrir portas nem janelas.

– Por isso, tudo está se tornando bolorento – ela decreta.

É claro que me incluo neste tudo. Afastados do mundo, eu e minhas pretensas ideias estaríamos criando bolor. A minha tese é de que a umidade não é fruto do fechamento de portas e janelas. Mas minha mulher insiste que é preciso ter, em qualquer cômodo, uma ventilação cruzada. E que a quantidade de papel...

– Livros! – quase grito.

Mas ela continua:

– ...que a quantidade pa-pel – soletra para me enlouquecer – é como uma esponja para a umidade do ar.

E logo arremata a sua análise:

– Qualquer pessoa que vem de fora sente este cheiro ardido de mofo.

Sempre sonhei com quatro paredes revestidas de livros, onde eu pudesse me sentir longe da vida doméstica, dos problemas cotidianos. A conta está negativa, mas faltam apenas umas poucas páginas para eu terminar de ler este romance. É claro que há algo de obsceno nesta fuga para a biblioteca, mas eu nunca quis ser o senhor cumpridor de todos os rituais da civilização.

Contrariando meu projeto juvenil de gastar a vida em uma nave espacial perdida no tempo, embora bem instalada no quintal, resolvi abrir as janelas e as portas. Agora, só trabalho com ar fresco, canto de passarinhos, os ruídos da rua e dos vizinhos. O que era um território autônomo cravado no meio desta pátria mercantil, hoje é apenas um apêndice do bairro, da cidade.

Desperdiçando meu tempo na biblioteca, agora sim pornograficamente aberta, tento ler e escrever.

Digo tento por­­que fui colonizado pela internet. Tornei-me uma dessas máquinas multitarefas. Leio, respondo e-mails, alimento o twitter e o blog, navego em sites, compro livros pela internet, sigo as notícias etc. As janelas que abri vão muito além do quintal e do bairro.

E isso tem sido um atrapalho. Fico sabendo de todas as novidades. Quem está em alta na cotação do mercado literário. A produção de todos que escrevem no Brasil e mais uma infinidade de grandes notícias do dia de hoje, que são incessantemente atualizadas. Enquanto isso, a biblioteca me diz coisas mais interessantes, notícias que sobreviveram a décadas, a séculos, a milênios, e que, mesmo emboloradas, continuam atuais.

Eu me esforço para corresponder à biblioteca e à internet. Uma é um velho armário onde vamos colecionando coisas que nos são caras – caras apenas para nós, a quem não repugna o seu cheiro de bolor, tão afeitos estamos a ele. A outra é esse rio sempre correndo rumo ao abismo, também conhecido como futuro.

Não sendo bom datilógrafo – sim, sou um datilógrafo que se adaptou à era do computador –, meus poucos dedos aptos para a digitação ficam doídos. A internet não me consome apenas o tempo, mas principalmente a ponta dos dedos. E todos sabem que as pontas dos dedos são essenciais para a literatura. É delas que vêm nossos textos. Resultado: quanto mais tempo passo na internet, menos me dedico ao essencial.

E a internet ainda tem um agravante: atua sobre o desejo de escrever. Somos continuamente bombardeados pelo sucesso dos escritores da hora. Daí pensamos: não há espaço para a nossa literatura mofada. Estes são tempos para textos arejados, que não queiram mexer com as pessoas. Para que então escrever?

Quando se quer matar um escritor, há uma arma acessível a qualquer um: é só minar o seu ânimo para a leitura e para a escrita. O escritor é uma planta de caule aquoso. Diante da menor agressão, já se deita sem capacidade para elaborar seus frutos.

E sempre está vindo pela internet uma negação dirigida a ele. Se não fosse por esta onipresença digital do mundo, ele não ficaria sabendo daquilo que disseram sobre seu último lançamento, da acusação pessoal sofrida, da avaliação rigorosa (mas não injusta) de um até então amigo. O escritor se desespera com estas invasões.

A primeira coisa que ele gostaria de fazer é fechar as portas e janelas das quatro paredes que o protegem. Mas se fizer isso, os livros vão embolorar. Os armários vão ficar verdes de limo. Ele pode desenvolver uma doença respiratória qualquer. Não, é melhor não fechar nada.

E, como única reação, seus olhos tímidos ganham um brilho líquido, embora seus músculos se enrijeçam agressivamente.

Em uma destas ocasiões, chega a minha mulher e pergunta o que está acontecendo.

Olho-a meio enlouquecido e digo:

– Está vendo o armário? Deixei todas as janelas abertas e ele continua tão mofado quanto antes.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]