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Eu odiava meu pai por causa de suas rondas noturnas. E morria de dó de minha mãe, sempre esquecida em casa, sem serventia para nada além dos trabalhos domésticos. Mas a mãe mesmo não reclamava das fugas do marido. Eu ainda era criança, não entendia muita coisa do mundo, esse vale escuro onde nos jogam não se sabe bem para quê. Hoje, sem pai nem mãe, fico tentando compreender aquele tempo.

Minha mãe era uma mulher grande, lembro-me bem das mãos dela. Manoplas, manzorras. Aprendi depois estas palavras. Não era o pai quem batia em mim quando eu fazia algo errado, por isso me recordo tão bem daquelas mãos ossudas. As veias e os nervos aparecendo. Pesadas que só vendo. Todas as partes de meu corpo já tinham experimentado o peso delas. Mas eu não tinha raiva da mãe. Ela descontava em mim as coisas que o pai lhe fazia.

O povo da cidade, sempre maldoso, tinha apelidado minha mãe de Dona Pequenina. E ela mesma assumiu esse codinome. Meu pai, nas conversas domésticas, só a tratava assim.

– Pequenina, você podia me ajudar com este sofá.

E a mãe pegava num dos braços do sofá, e erguia como se não pesasse nada. O pai segurava na outra ponta, vergado pelo esforço. Era engraçado ver os dois, o homem miúdo e a mulher imensa. Janjão e Dona Pequenina, em aspectos inversos aos nomes.

Janjão saía pela noite todo faceiro e se perdia em bailes, bares de mulheres e pontos de conversa. Em casa, Dona Pequenina ficava cosendo uma roupa para ela ou para mim, ouvindo a novela na tevê, pois não prestava atenção nas imagens.

Eu dormia no sofá; nunca no colo dela. Era meu pai, quando chegava em horário impróprio, que me levava para o quarto. Ele me beijava, rezando uma ave-maria, e isso me fazia odiar ainda mais aquele homem. Deixava a mulher e o filho em casa, saía para a rua – eu começava a imaginar o que ele fazia por lá –, e depois chegava com ar de santo.

Mas o que pode um menino? Afundava a cabeça no travesseiro e tratava de fingir um sono que não viria. O pai saía de mansinho, encostando a porta, e seguia para o quarto deles. A casa era de madeira, sem forro. Eu me erguia na cama para prestar atenção na conversa. No começo descompreendia as coisas ouvidas.

– A mulher tinha uns peitos grandes e macios, Pequenina.

– Então eu cheguei mais perto da morena e me encostei na coxa dela enquanto dançava, e ela começou a tremer, dizendo que...

– Esta noite, beijei os lábios pintados de uma vagabunda que encontrei na rua. Eram suculentos como morangos maduros.

– ... e quando chegamos ao quarto, ela tirou a roupa e vi a...

Esse era meu pai. O devasso. Eu ouvia toda noite pedaços de suas libertinagens, mas nunca uma palavra de protesto de minha mãe, explorada pelo marido, que ainda exigia a sua cota de amor doméstico. Nessas horas, eu tentava não ouvir os sussurros e os nomes de mulheres sendo pronunciados.

Isso só acontecia nas noites de sexta-feira. Nas outras, o quarto em silêncio, o sono logo tomava conta deles. Na manhã de sábado, eu sem ter dormido direito, não conseguia tomar café com os dois. Mas a mãe preparava as coisas mais gostosas. Rabanada, por exemplo. Só fazia rabanada nas manhãs de sábado. Intuí o drama dela: queria prender o pai pelo estômago.

Janjão aparecia com olheiras e o pijama amassado, sentava na mesa e se fartava com aquelas guloseimas. A mãe servindo bem alegrinha. Apenas nos sábados ela sorria. No domingo já outra mulher, fazendo alguma tarefa, indiferente ao mundo.

Foram muitos anos assim.

Cresci e comecei a sair de casa à noite. Buscava não freqüentar os mesmos lugares de meu pai. Já não conversávamos. Ele não ia ao meu quarto para rezar. Os seus olhos cada vez mais vermelhos e tristes, mas eu ignorava o que acontecia nas noites de sexta e nas manhãs de sábado por voltar muito tarde e dormir até depois do almoço.

A mãe envelheceu. Ficou doente. E se fechou ainda mais. Eu sabia quem era o grande culpado. E não seria igual a ele. Casado, daria atenção à minha mulher. Mas nem namorar eu ainda namorava. Apenas bebia com os amigos.

E foram os amigos que me levaram à zona uma noite, eu já meio bêbado. No meio do salão muitas mulheres meio nuas; nós começamos a dançar com elas, até que um dos amigos apontou para uma mesa do canto. Janjão dormia com a cabeça sobre os braços. Saí de lá na hora.

No meio da semana seguinte, voltei à mesma casa e falei com as mulheres, sem revelar quem eu era. Com quem Janjão ficava? Queria conhecer as mulheres postas no lugar de Dona Pequenina.

– Com ninguém.

– Como assim?

– Ele vem aqui, bebe e dorme. Quando fica tarde, lava o rosto no banheiro e volta para os braços da mulher.

Diante de minha expressão, que devia ser de espanto, ela completou.

– É isso que as pessoas dizem. A outra exige que ele busque na rua o cheiro e as imagens das mulheres que ela tanto deseja.

Naquela noite, quem apareceu em casa com odor de vadia fui eu.

Meu pai logo morreria. Agora era eu quem ia para a zona todas as sextas-feiras.

Ao chegar em casa, Dona Pequenina estava me esperando para beijar ardentemente o meu rosto.

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