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Miguel Sanches Neto

Da importância de ser esquizofrênico

O professor Castro Rocha desconfia dos consensos sobre a crítica literária | Divulgação
O professor Castro Rocha desconfia dos consensos sobre a crítica literária (Foto: Divulgação)

Um dos ensaios brasileiros mais importantes da última década, Crítica Literária: em Busca do Tempo Perdido?, de João Cezar de Castro Rocha, foi publicado por uma editora universitária, a Argos, da Unochapecó. Essa denominação de origem apontaria necessariamente para uma postura de negação da crítica jornalística, pois são históricas as divergências de método entre a leitura de livros fora e dentro da universidade. A primeira qualidade deste livro, portanto, é que o autor evita o lugar comum de achar que a universidade deu a palavra final sobre o assunto.

Professor da UERJ, com carreira internacional, João Cezar vem se fazendo uma das vozes mais originais no debate intelectual brasileiro justamente por desconfiar dos consensos. Não existe crítica, e sim mero proselitismo, onde as ideias se sedimentaram. A crítica se afirma sempre como uma contraposição às hagiografias. Ela é um exercício de leitura – e de reconhecimento – do outro, naquilo que o outro muitas vozes nos nega, tirando-nos das zonas de conforto.

O autor traça neste livro a evolução da crítica brasileira em particular, mas em consonância com a internacional, no seu caminho de especialização. Deixando as páginas de jornais, e a linguagem de trânsito livre que elas pressupõem, as análises foram se encastelando na linguagem do exercício laboratorial das universidades, perdendo com isso o seu poder de diálogo. Desde meados do século 20, quando os professores universitários identificaram como inimigo o crítico de jornal, tido como um diletante, vem ocorrendo uma luta aberta entre esses dois polos. João Cezar analisa passo a passo, sempre com muitos dados, a polêmica entre a cátedra e o jornal, identificando como nociva esta atitude bélica.

As conclusões a que o autor chega são inquestionáveis. Enquanto críticos universitários tentavam enterrar os de rodapé, o jornalismo se modificou e quem ganhou centralidade foi o audiovisual, dominante não só nos jornais, mas nos próprios cursos de Letras. Em outras palavras, a universidade combateu tanto a crítica de jornal, mas o inimigo era outro, o entretenimento total: "A derrota da crítica do rodapé trouxe no seu bojo o triunfo dos meios audiovisuais; portanto, esta derrota também prenunciou a futura crise do ensino universitário [...], com seu número sempre crescente de alunos que leem cada vez menos literatura" [...] e de professores "cada vez mais preocupados em exibir dotes filosóficos, discutir os últimos lançamentos cinematográficos, além de ensaiar análises musicais" (p.352). Para reverter um pouco este quadro, João Cezar propõe uma superação das dicotomias por meio de uma atitude que ele chama de "esquizofrenia produtiva": a capacidade, tanto na área jornalística quanto na universitária, de ser "bilíngue em seu próprio idioma, aprendendo a falar com audiências diversas" (p. 159). Ou, como dirá depois: "fecundando o ensaísmo acadêmico com a clareza do texto jornalístico, e, ao mesmo tempo, enriquecendo a visão crítica dos cadernos culturais mediante a formação universitária" (p. 386).

Com uma proposta polêmica principalmente no meio universitário, aferrado à presunção intelectual, João Cezar aponta um caminho não de recuperação do rodapé, pois esse tempo está de fato perdido, mas de contaminação dos contrários. O próprio livro demonstra tal modelo ao se valer de uma linguagem aberta, que apresenta ao leitor pesquisas sérias, avessas aos clichês, num estilo ensaístico, com idas e voltas em torno de temas abordados por vários ângulos. Assim, mais do que um programa, Crítica Literária: em Busca do Tempo Perdido? é o primeiro grande fruto desta metodologia.

Serviço:

Crítica Literária: em Busca do Tempo Perdido?, de João Cezar de Castro Rocha. Editora Argos, 443 págs. Ensaio.

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