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Não há verdades, apenas versões. Levando este raciocínio ao seu extremo, chegaremos à conclusão de que tudo é ficção. Assim, nada coincide com nada. O que vejo não é igual ao que o outro vê, mesmo quando estamos olhando para o mesmo objeto e do mesmo mirante. Movemo-nos em meio a realidades construídas.

Gosto de pensar nisso quando ouço um relato qualquer. A pessoa acredita que está sendo fiel ao acontecido, quando o acontecido só aconteceu daquela forma segundo uma ótica impressionista. Sei do conforto da certeza, pois ao relativizarmos a verdade entramos num terreno perigoso, corroendo as bases da justiça – justiça que será sempre a imposição de um ponto de vista sobre os demais. O elogio da mentira faz com que não exista mais o certo e o errado. A razão cabe a todos e não a apenas um dos lados.

Por precaução, então, continuamos acreditando numa realidade segura e é neste solo firme que erguemos instituições como a História, o Direito, a Ciência etc. Nestas instâncias disciplinadoras, não há espaço para ambigüidades. O real se faz monolítico.

Mas nem todos os espíritos se convencem disso.

Desde muito cedo, padeci da dor da dúvida. A primeira irrealidade que me atormentou foi sobre a minha própria existência.

O que era ser quem eu era? Se morrer interrompia esse eu, a existência não passava então de uma mentira. Pois ser não admite não ser. A hipótese de não ser nega a minha certeza quanto a mim. Se um dia eu deixarei de existir é porque de fato nunca existi. Fui uma criação ficcional, com muitas variantes.

Uma comprovação disso está nas fotos. Sou por natureza antifotogênico. Estou sempre de mal-jeito nos álbuns de retrato. Não sei fazer pose. É que nunca me reconheço nessas representações. Elas se afastam de quem sou. Não há coincidência entre aquele que me imagino e as imagens que são feitas de mim – ou dele; melhor dizendo: deles.

Ainda jovem, descobri a ficcionalidade do mundo. E resolvi aderir ao seu princípio desviante. Quando tinha de contar algo, não tentava me aproximar daquilo que eram as experiências pretensamente vividas pelos demais. Construía a minha versão, acrescentando elementos, mudando falas, cortando alguns fatos, prolongando outros, de tal forma que o que eu narrava pudesse adquirir uma maior plasticidade. Por este senso de acabamento, minha versão, em muitos casos, passava a ser a oficial.

Naquele tempo, fazia apenas um uso doméstico da ficção. Ia erguendo fachadas alternativas para me mover num mundo que me parecia precário e improvável. Se tudo se desfazia tão rápido, eu devia manter vivas as experiências que me dessem materiais de memória. E só memorizamos aquilo que contém uma estrutura acrescentada posteriormente.

Assim, as minhas recordações são remodeladas. Nada existiu da maneira que me lembro, mas o que me lembro é o que conta para mim como existência. Fico imaginando quando alguém tentar saber quem eu fui. Existirão tantas versões de meu eu que não será possível fixar este ser desconfiado de si próprio. A multiplicidade que vivo, no entanto, nada tem a ver com a criação de personagens distintos, como fez um Fernando Pessoa. É uma espécie de palimpsesto sem o ser original, mas com vários rascunhos sobrepostos, meio apagados pela soma de muitos contornos.

Quando li, em Nietzsche, que "falar muito de si é também um meio de se esconder", achei a explicação para esta infindável literatura autobiográfica que faço. Sou todos que digo ser para justamente não ser ninguém, assumindo dessa forma minha inexistência. Estou me escondendo quando escancaro minha vida. Porque minha vida, ou qualquer vida, só pode ser escancarada a partir de mentiras.

No começo, incomodava-me que minhas histórias não fossem confirmadas pelas pessoas. Elas tinham um caráter tão verdadeiro para mim que eu não entendia como podiam soar falsas para os de meu convívio. E eu me ofendia quando alguém me acusava de estar faltando com a verdade. Mas com qual verdade eu faltava? Apenas com a verdade de alguém, nunca com a minha verdade. Se era questionado em público, entrava em pânico. O que vão pensar de mim? É que eu ainda cria no que os outros diziam ter acontecido, achando que eu exagerara ao me distanciar daquele núcleo de fatos comuns a todos.

Depois que fui apresentado à literatura, acabei descobrindo que estava num território em que minha tendência interior podia se expandir. Todo ficcionista é um ilusionista profissional; promove uma proliferação de entes e fatos, embaralhando assim as muitas realidades. Todas verdadeiras à sua maneira. Pois só à maneira de cada um é que pode haver verdade.

Assumidamente mentiroso, não busco a posse do real, pois sei que ela não passa de uma forma de dominação. Persigo as versões, que acrescentam novos possíveis no vasto universo das representações.

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