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Miguel Sanches Neto

Ideologia ambígua

Defender literariamente uma ideologia é sempre um grande risco. Na maioria das vezes, a ideologia rende obras fracas, o que não impede que, em casos raros, a arte sobreviva – de forma puramente acidental – às crenças do autor.

Certidão de nascimento do Sul do Brasil, o poemeto épico O Uraguai (1769), de Basílio da Gama (1741-1795), tem resistido aos séculos apesar de sua adesão ao poderoso do momento: o Marquês de Pombal. Ex-aluno do Colégio Jesuíta, o poeta árcade, primeiro brasileiro a ocupar posição literária internacional de destaque (foi da Arcádia Romana), teve que negar o seu passado e aderir às políticas imperantes para não ser deportado para Angola. Como parte desse projeto de ascensão social, escreve O Uraguai para provar como eram perversos e corrompidos os jesuítas dos Sete Povos das Missões, justificando assim as ações de Pombal.

Em cinco cantos, que se lê com grande interesse, e se valendo de recursos técnicos modernos, como o uso de elipse e de flashback, Basílio da Gama mostra o momento em que duas potências – Portugal e Espanha – mobilizam sua força militar para anexar as reduções ao poder central. Por meio do Tratado de Madri (1750), ficaram delimitados os nossos territórios. Mas as missões não queriam pertencer nem a um nem a outro país e são tratadas pelo poeta como uma perigosa república. O índio Cacambo, desabusadamente, sugere que Portugal troque as Missões (em território espanhol naquele momento) por outros locais, como Buenos Aires e Correntes. Se aceita a sua proposta, estas seriam localidades brasileiras.

Basílio da Gama viveu um drama próprio do criador entre dois mundos: tinha de culpar os padres (pretensamente marcados pela cobiça e pela inveja) e inocentar os índios. Para isso, pinta alguns selvagens como inocentes úteis, criando os primeiros heróis da nacionalidade – heróis que na verdade eram estrangeiros: Cacambo (o chefe), Sepé (o grande guerreiro), Tatu-Guaçu (guerreiro que é um herói medieval com uma armadura selvagem – usa peles de jacaré para se proteger) e a linda e fiel esposa – Lindoia. O poema consegue dessa forma narrar a dizimação dos índios e expulsão dos jesuítas, contentando os políticos portugueses, e enaltecer os valores nativos.

Suas descrições da marcha dos soldados trazem questões premonitórias. O autor descobre o verdadeiro inimigo num meio em que a natureza tem regras próprias: o homem integrado à selva tem nesta condição o seu poder de combate. Isso marcará a experiência dos soldados em lutas contra comunidades autóctones – tanto na futura Guerra de Canudos quando na do Paraguai, o rebelado se fortalece por conhecer e amar o meio, movendo-se ali com grande intimidade.

Saem das grutas pelo chão cavadas,

Em que até li de indústria se escondiam,

Nuvens de índios, e a vista duvidava

Se do terreno os bárbaros nasciam. (p.73)

Eles são descritos por Basílio da Gama como elementos da natureza (nuvens e plantas, porque nascidos do chão). O poeta percebe também como o índio tira partido da situação estrangeira dos invasores. O exército é surpreendido por uma enchente nas margens do rio Uruguai; e sofre com a destruição dos campos de gramíneas, o que impede que se alimentem os cavalos.

Nasce da sensibilidade a esse universo, que o poeta conheceu por meio de relatos de amigos, um desejo ambíguo de destruir e de fundar uma república à parte. Basílio da Gama nega o projeto de independência, mas dá vida a personagens indígenas que despertam um sentimento de liberdade em relação não só aos jesuítas mas também à própria Coroa Portuguesa. Daí podermos dizer que este livro traz a matriz da utopia separatista do Sul.

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