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Havia a suspeita de que a namorada estivesse com a nova gripe. Tossia muito quando se encontraram no sábado, agora a mãe a levara ao médico e todos em casa usavam máscaras. Quando ele chegou para a visita noturna, ficou assustado, mas partiu para a brincadeira.

– Estão pensando em assaltar algum banco?

Ninguém riu. Mas era engraçado ver o casal de velhos com roupas fúnebres e máscaras brancas. Além da filha, havia ainda os dois rapazes, mais velhos do que ela; e todos estavam com máscaras e os mesmos moletons cinzentos. Ele poderia se confundir. Então fez mais uma brincadeira.

– Qual dos três aí é a minha namorada?

E logo a identificou pelo olhar de reprovação.

– Não é hora de gracinhas – ela falou, abrindo um lugar para que se sentasse no sofá e estendendo uma máscara a ele.

Na mesma hora, a sogra apareceu com uma garrafa de álcool já aberta, levando-a em sua direção.

– Espera aí, vão atear fogo em mim só porque fiz umas piadas?

A namorada puxou as mãos deles e esfregou muito álcool.

– Vocês devem estar me confundindo. Não sou médico. Não vim operar ninguém. Por favor, luvas cirúrgicas eu não vou usar.

Mas ninguém estava interessado em suas brincadeiras.

– Você parece que não tem medo da gripe – falou a sogrona com a voz meio cavernosa por causa do tecido na cara.

– Depois de ter namorado com sua filha...

– Você não vai parar com essas bobagens. As pessoas estão morrendo. Não assiste televisão?

Todos ficaram em silêncio, permitindo que se ouvisse a chuvinha fina na vidraça. Mas logo vieram as tosses. De quem seriam? Eram tosses incógnitas. Poderiam ser de qualquer um, pois a pessoa agora disfarçava esses sintomas.

A namorada amarrou a máscara nele, ouvindo-o cochichar:

– Vamos lá no quarto brincar de médico.

Mas ficaram ali vendo tevê, sentindo-se prestes a morrer. Ele não poderia nem beijar a namorada, pois ali todos seguiam as recomendações dos infectologistas. Era uma exacerbação do sexo seguro. A geração dele já tinha sido afastada de contatos mais intensos com o outro. Sexo apenas com preservativo, tão diferente dos tempos de seus pais, quando tudo que tinham que fazer era evitar certos dias.

Olhou para a família da namorada e riu. Parecia uma família mulçumana, com a diferença de que aqui tanto os homens quanto as mulheres tinham pejo do rosto, por isso usavam essa versão light da burca.

– Do que você está rindo? – quis saber a namorada.

– Da dificuldade que deve ser para quem fuma. Agora sim que ninguém vai poder fumar em ambiente público, mesmo que não seja proibido.

– Tem horas que acho que falta mesmo uma arruela na sua cabeça. Você fala cada coisa.

E ele fez a sua melhor cara de idiota, uma em que ergue olhos e sobrancelhas, enrugando a testa. E continuou sigilosamente o seu raciocínio.

Se as medidas preventivas persistirem, as pessoas não poderão mais beijar. A onda dos selinhos, de ficar com uma nova parceira em cada festa, tudo isso sofrerá uma retração. Amigos não estão nem se cumprimentando.

Para se divertir, ele pegava na mão de todo mundo, forçava um aperto prolongado, aproximando o seu rosto ao do outro. A pessoa ficava assustada, enrijecia o corpo, perdendo a voz, enquanto ele continuava falando em ritmo acelerado, espalhando perdigotos por todos os lados, alguns na face do interlocutor. Sabia uma maneira de pronunciar as palavras Estados-Unidos-da-América que liberava um verdadeiro bombardeio de cuspe, suficiente para inundar qualquer face. E sempre repetia essas palavras.

– O culpado desta pandemia são pessoas iguais a você – um profissional da área da saúde o acusou depois de receber uma rajada de projéteis pegajosos.

Sim, ele gostava de se sentir diferente, desrespeitando as paranóias coletivas, zombando das pessoas. Mas ali com a namorada ele também usava máscara.

Aquelas pessoas conheciam uma união que não existia antes. Estavam num bunker, resistindo às invasões. Mais do que uma família, formavam um clã, uma pequena nação. E se protegiam do mundo, das impurezas da vida – e ele era toda esta impureza. Daí o ódio que encontrava nos olhos de todos, até nos da namorada.

Na hora de ir embora, sem nem tocar nela, ele segurou por bastante tempo a maçaneta. Enquanto dizia algumas amenidades, via a sogra com o paninho e o álcool na mão. Assim que ele se dignasse sair, ela correria para desinfetar toda a porta.

Quis devolver a máscara ao partir da namorada.

– Melhor ficar com ela – era como se eles estivessem se despedindo para sempre.

Ao chegar em casa, sentiu-se ridículo com a máscara. Dormiria com ela, mesmo morando sozinho? Ligou o computador para se conectar com uma pessoa que havia conhecido na internet.

Ela morava em Madri. Pelo horário, devia estar amanhecendo por lá. Chamou-a pelo messenger; uns minutos depois ela respondeu.

– E o tempo aí?

– Muito calor, estou só de calcinha e camiseta.

Estremeceu diante deste primeiro desnudamento, verbal. Eles ainda não tinham webcam.

– Já amanheceu?

– Está amanhecendo. Uma manhã ensolarada.

E ele sentiu todo aquele sol saudável chegando do outro lado do oceano. Afrouxou um pouco a máscara e continuou dizendo palavras quentes para quem, embora tão distante, estava ali ao seu lado na noite chuvosa.

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