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Miguel Sanches Neto

O elogio da corrupção

Ligo a televisão e fico brincando de dar a volta ao mundo em 80 canais. Passo por todos, num sentido e no outro, e acabo, quase sempre, desligando a tevê e retomando a leitura de um livro. Depois me perguntam como arranjo tempo para ler e escrever. Está explicado. O mundo se tornou muito, mas muito desinteressante. Todos pensam da mesma forma, vestem-se da mesma forma, falam da mesma forma. Repetição pura.

Esta noite, estava pulando de canal para outro muito rapidamente quando ouvi a voz do Professor. Parei na hora. Ele dava uma entrevista nesses programas a que ninguém assiste. Eu ouvia a voz mas não conseguia compreender o que ele falava; aliás, o que ele fazia ali. O que causava este estranhamento não era só sua presença televisiva mas o fato de ele estar vestindo camiseta. Nunca vi o Professor em tais trajes, ele sempre foi muito formal, camisa de manga comprida e o paletó de sempre; sapatos velhos, mas engraxados. Não combinava com ele esta camiseta branca com letras vermelhas, onde li: "Vote nos mais corruptos".

Nesse instante, comecei a entender a resposta que ele dava ao entrevistador.

– ... a corrupção está em nossa origem, é uma lei que determinou a evolução do homem. Sem a corrupção ainda estaríamos morando nas cavernas.

Meu Deus, o Professor tinha de fato enlouquecido. O que ele estava dizendo era um disparate. Ele já me falara que os políticos jamais são corruptos, apenas se enganam a si mesmos, achando que cobram o que a sociedade lhes deve. E agora essa idéia da corrupção como força civilizadora.

– O senhor podia explicar melhor isso? – perguntou o entrevistador.

– Claro, é uma questão lógica. Se o homem fosse incorruptível, não teríamos evoluído. A evolução é a soma de infinitos atos de corrupção. Se ninguém tivesse tirado vantagens pessoais, não haveria estímulo para dedicar a vida aos grandes ideais. A corrupção permite que o indivíduo pense na coletividade – os mais idealistas serão sempre os mais corruptos. Se os políticos só ganhassem os salários, não haveria política. Não teríamos instituições sólidas. A força das instituições está na corrupção. Como a classe dirigente se corrompe, em troca de dinheiro ou de prestígio, um prestígio que vai dar dinheiro, as instituições se mantêm inabaláveis.

– O senhor então é favorável à corrupção?

– Nem favorável nem desfavorável, apenas constato um fato. A corrupção melhorou a humanidade.

– O Professor vai votar em corrupto?

– E tem outra opção?

O entrevistador riu, eu também. O Professor estava se saindo bem, tratando o tema com humor.

– Todos os candidatos são corruptos então?

– A corrupção é a alma da humanidade. Não só da política.

– Ou seja, todos somos corruptos.

– Você chegou ao âmago da minha tese. A corrupção não é só um defeito de caráter dos políticos. É próprio da natureza humana.

– O senhor poder dar um exemplo?

– Vejamos um caso bem doméstico. O marido vê a mulher, que já não é assim tão bela e anda um tanto arredia, mas ele está precisando descarregar as tensões. Então elogia a esposa, diz coisas românticas, propõe uma viagem no fim do ano, e consegue seduzi-la. Isso é corrupção.

– Dessa forma, não sobraria ninguém – o entrevistador disse, rindo.

– Só os santos, mas esses andam meio sumidos.

– Vamos pensar em um caso mais explícito.

– Gorjeta para garçom.

– O Professor está exagerando, não?

– Então me diga por que damos gorjeta a garçom? Já pagamos a comida, ele tem o salário dele. Há os 10% de taxa de serviço, que é a institucionalização da corrupção, e muitos ainda dão a gorjeta.

– É um agradecimento aos serviços prestados.

– Engano. É corrupção da braba. Damos a gorjeta para ele nos atender bem sempre. Ele dispensa mais atenção à nossa mesa do que àquelas ocupadas por quem não molha sua mão.

– Tudo então é corrupção?

– Isso, tudo. O beijo que damos ao encontrar as pessoas é corrupção.

– Calma lá, Professor, aí é já um pouco demais.

– Beijamos a pessoa para que ela nos ache educados. Nós no fundo não queremos fazer isso, mas beijamos.

– E quando gostamos da pessoa, que é atraente?

– Estamos sendo mais corruptos ainda. É porque queremos algo dela, e estamos já tentando tirar uma casquinha.

– Se vou a uma loja para comprar algo, experimentarei a corrupção?

– É evidente. O vendedor vai mentir, dizendo que a roupa ficou bonita em você ou qualquer outra baboseira, tudo porque ele ganha comissão na venda. Esta comissão obtida é um porforamente.

– Como assim porforamente?

– Recebido de forma indevida.

– Ok acho que o senhor conseguiu demonstrar que as relações humanas são regidas por interesses pessoais na maioria das vezes. Mas existiriam pessoas que fogem à regra?

– Humanamente impossível. Mesmo quem não se corrompe se mantém íntegro apenas para que as pessoas falem bem dele. E isso também é uma forma de corrupção.

Rindo, o entrevistador se encaminha para o fim da conversa.

– Por conta de tudo isso é que o senhor lidera este movimento em prol da corrupção.

– Exatamente. Será melhor representante do povo aquele que for mais corrupto. Ele será um político dedicado, pois perder o cargo significaria perder muita coisa. Temos que legalizar a corrupção. Isso vai ajudar a desenvolver nosso país, onde esta prática é tão comum.

– O telespectador acabou de assistir à entrevista com esta figura incorruptível...

Desliguei a tevê, e fui colocar bananas na sacada de meu quarto, onde todas as madrugadas os passarinhos aparecem para cantar.

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