"Algumas pessoas reconhecem o poeta, mas ele não enxerga ninguém. Altivo, marcha sempre em frente, como cabe a um artista de vanguarda."
Na sexta à noite, o poeta sofre de ansiedade. Na manhã seguinte, irá à feira. O que pode parecer algo simples para as demais pessoas, é para ele um compromisso importante. Antes de dormir, o poeta pensa no que comprará. Como estarão as berinjelas? E é com prazer que ele antevê a casca roxa e luzidia da berinjela, como se fosse a coxa de uma deusa de ébano. O poeta se flagra passando o dedo indicador naquela pele que nenhuma mulher jamais terá. E se rende a seus encantos, dormindo embalado pelo desejo, com uma incômoda ereção.
No outro dia pela manhã, antes do sol nascer, levanta-se animado. Faz a barba e segue para o chuveiro. Depois do banho, veste uma cueca branca ele só tem cuecas brancas e uma camiseta pólo da Lacoste, uma calça jeans, meias soquetes e um tênis Puma. É o único dia da semana em que usa sua indumentária esportiva. E o poeta então se sente jovem.
Tira o carro da garagem, vai para a feira antes das 7 da manhã. Beber a água antes que a sujem, ele pensa. Quando estaciona o carro, sempre no mesmo lugar, um menino já o espera. Vem com um carrinho de mercado. Não trocam nenhuma palavra, apenas um olhar de confirmação. O poeta sai pela feira com a cabeça ereta. O menino o segue a certa distância.
Primeiro a banca de frutas, onde o poeta escolhe morangos avulsos. Não suporta a mania de venderem morango em bandejas cobertas com filtro de plástico. Ele então escolhe as frutas de pele brilhosa, de um vermelho intenso, próximo do roxo. E somente as graúdas. Lembram-lhe os lábios avermelhados de uma musa do cinema.
Depois dos morangos, gosta de comprar maçãs na mesma banca. Estão lá as argentinas, vermelhas e suculentas. O poeta acaricia uma por uma e depois as esfrega na calça, dando-lhes um brilho inimaginável.
Ele tem horror aos pêssegos. A pele áspera o afasta deles. Nada com aquele visual rústico merece ser consumido. Gosta de pêssegos em caldas, carnudos, obscenos como as tetas de madonas renascentistas. Mas nunca o fruto in natura. Foge também das jacas e dos abacaxis. Não entende como alguém pode se encantar com frutas tão, tão... vulgares. Mas se entusiasma com nectarinas, lembrando que elas são néctares dos deuses. E ri para si mesmo enquanto escolhe as mais reluzentes.
Paga as compras e não aceita troco para uma das notas graúdas que deixa ao feirante. Sequer olha na direção das sacolas plásticas, de um material ordinário, que o repugna. Abandona tudo na banca. O menino vem em seguida e as guarda no carrinho.
Algumas pessoas reconhecem o poeta, mas ele não enxerga ninguém. Altivo, marcha sempre em frente, como cabe a um artista de vanguarda.
A próxima parada é na banca de verduras, que pertence a um chacareiro da região. Lá ele compra apenas alface, mas de todas as variedades. Americana. Crespa. E roxa. Separa maços de cheiro-verde que parecem pequenos buquês de flores numa única tonalidade. Escolhe ainda alguns leques enfeixados de couves, que o remetem ao imaginário oriental.
Paga e vai adiante. Até encontrar a banca dos pimentões. Compra-os nas três versões vermelho, amarelo e verde. São imensos e lembram alguma coisa perigosa. Ainda nesta banca, ele escolhe uvas várias, das mais escuras às itálias. O poeta não admite que elas estejam cobertas por uma suspeita camada branca. Não seriam defensivos? O feirante, em casa, limpa alguns cachos, que são escolhidos por este enigmático freguês, que não conversa com ninguém, mas dá sempre notas altas e não aceita troco.
O poeta não olha nem de relance as laranjas peras ou baianas, mas estaciona diante de uma banca que vende limas pérsias, de um amarelo meio esverdeado, pele lisa, tamanho exagerado. Poucos compram essas limas, e isto é mais um motivo de contentamento para ele.
Chega então aos tomates. Evita os comuns, optando sempre por uma espécie comprida, que chega a ser adocicada. Ele escolhe tomates de três fases. Quase verdes esses ficarão na fruteira , levemente maduros para as saladas e muito maduros para os molhos. Separa em sacolas diferentes, com o cuidado de quem lida com perigosas granadas, que podem explodir a qualquer momento.
Chega a hora de comprar couve-flor e brócolis. Para ele, não fazem parte do mundo das hortaliças; são flores, flores que servem também como alimento. As couves-flores não podem ter uma pinta escura e as folhas verdes que a circundam devem estar viçosas. Já o brócolis não tem que ser bem verde, o amarelado indica que em breve estarão soltando pendão. Compra também um ramalhete de rabanetes e outro de cenouras solares. O poeta faz estas aquisições com um apaixonado que escolhe presente numa floricultura.
Deixa esta banca e avança. Agora uma provação. Passar pelos vendedores de carne de porco, de peixe e de pastel. Uma perversão da feira. Ele sente seu estômago embrulhar. Não suporta estes produtos rústicos demais. O poeta já sente o cheiro de gordura velha da barraca de pastel. Oh, meu Deus, livrai-me das frituras ele suplica, mentalmente. A despeito de toda a repugnância, sua boca, num mecanismo descontrolado, libera uma onda de saliva. E ele sente ainda mais raiva da pastelaria, que desperta seus piores instintos.
E o poeta chega enfim à banca que vende berinjelas. Seu coração dispara. Ei-las. Pega uma por uma, aperta aquelas coxas firmes, acaricia a superfície. E compra várias delas.
É finda a feira. Agora, a urgência de voltar para casa. Sua boca fica seca. Aperta o passo rumo ao carro. O menino o segue. Abre o porta-malas e ajuda a guardar tudo. Dá uma boa gorjeta ao ajudante, para livrar-se rápido dele.
Em poucos minutos está em casa. Sobe pelo elevador com as muitas sacolas.
Na cozinha, deixa tudo na mesa. Abre a porta da geladeira e começa a tirar as frutas e verduras e legumes velhos, comprados na outra semana. Saem cenouras escuras e murchas. Berinjelas esmaecidas. Alfaces pretejadas. Maçãs com pontos podres. Uvas caídas do cacho. O poeta vai pondo tudo na lata do lixo. Aquele mundo perdera a validade. Era preciso reinventar o frescor das coisas.
Depois de limpar a geladeira, o poeta gasta o resto da manhã ordenando suas compras, distribuindo-as pelos vários compartimentos. Sabe que não comerá aquilo tudo, mas organiza a geladeira como se estivesse fazendo um estoque de comida para a guerra. O poeta, que já quase não publica, se realiza com esta obra provisória, que precisa ser refeita toda a semana.



