Gente velha
Houve um tempo em que havia gente de idade, de muita idade, morando com famílias recém-instituídas. Eram navios avariados descansando em praia de veraneio. Contemplá-los quietos no meio de tanta agitação, cultivando ferrugens e saudades, revelava-se mais fascinante do que todas as possibilidades de ação.
Sim, já existiram velhos que não se queriam jovens, e como era bom tê-los pela casa, embora morassem mesmo em outro tempo.
Tia Prudenciana
Nunca se casara e, totalmente fora da realidade, passava temporadas nas casas dos parentes, num sistema de rodízio.
Como a senhora está, tia? perguntava alguém.
Ah, demais de cansada. Olha aí e apontava o jardim de nossa casa urbana , colhi sozinha toda essa roça de arroz.
Queríamos sempre casá-la de brincadeira com os solteirões que conhecíamos.
Capaz! ela protestava Papai não deixa.
Todos cuidavam dela com carinho. Meu irmão, um dia, a encontrou na rodovia, já distante da cidade.
Aonde pensa que está indo?
Ver papai.
Mais tarde nós levamos a senhora lá, agora vamos voltar.
Ela retornou alegre com a possibilidade da visita iminente ao pai, morto décadas atrás, no sul de Minas.Vó Rita
Que era, na verdade, nossa bisavó. Por ter criado minha mãe, órfã muito jovenzinha, era tratada por todos de avó.
Aparecia em casa em pequenas temporadas, discreta e impecável. Matriarca ciosa de sua função, queria tudo em ordem e vivia exigindo da gente atitudes de renúncia.
Na primeira vez que vi um bombom, em visita a certos conhecidos ricos, nós nos servimos de apenas uma guloseima, comida com avareza, em pequenas mordidas. Ela nos vigiava, proibindo qualquer entusiasmo que revelasse nossa gulosa pobreza.
Vó Rita declamava um poema, do qual restaram apenas dois versos: "Lá vai Miguelzinho / montado em seu cavalinho".
Esqueci o poema, nunca aprendi a andar a cavalo. Vó Rita logo morreu e só fui visitar seu túmulo 30 anos depois.Vó Carmem
Ao casar-se, minha mãe herdou a sogra.
Vó Carmem era dura, tinha um olhar severo, vestia-se impecavelmente, nenhum fio de cabelo fora de seu coque. Deixou nossa casa quando, depois da morte de meu pai, minha mãe se casou de novo. Mas voltava sempre para visitar o túmulo do filho amado.
Passou uma temporada comigo em Curitiba. Eu queria levá-la para passear, mas não aceitava. Com muito esforço, arrastei-a a um restaurante.
Ficou anos narrando para todos que a visitavam que o neto a levara a um restaurante e que não tinha vergonha dela. Mas reclamava, cheia de pudores, quando eu beijava publicamente sua face enrugada.
Vó Gasparina
Ainda está viva foi a terceira mulher de meu avô materno, José Alves da Silva, vulgo Zé-Zabé. Madrasta de minha mãe, é tia de meu padrasto (a quem chamo de pai) e irmã de Prudenciana.
Eram assim as famílias daquele tempo havia sempre muitos graus de parentesco entre as pessoas, e a todos, parentes por sangue ou consideração, pendíamos bênção.
Quando viveu uma temporada em casa, Vó Gasparina gostava de fazer tapetes de retalho e sempre tinha algum dinheiro para nós. Faz anos que não a vejo.
Bença, vó.
Baixinho
Chamava-se Olímpio, mas todos só o conheciam por Baixinho. Não era parente nem por consideração; amigo apenas. Sem família, tendo trabalhado a vida inteira, nos sertões do Paraná, com o povo de meu padrasto, um dia apareceu do nada, ajudou a fazer uma área, que ficou mal-enjambrada, morou aqui e ali, até que lhe deram uma pequena casa de madeira e lhe arranjaram o casamento com uma viúva. Vivia de sua horta e da aposentadoria mínima.
Quando eu voltava à cidade, sempre aparecia para longas palestras. Educadíssimo, recusava-se a entrar em casa, ficando do lado de fora do portão, marcando um distanciamento. Soube então que, no interior de São Paulo, tinha sido amigo de infância de meu sogro, mas nunca mais se encontraram.
Hoje, Baixinho pertence ao esquecimento, de onde de vez em quando me fala, sempre do outro lado do portão.
Compadre Futrica
Em Francisco Navarro Moreno o gênio espanhol falava mais alto, razão do apelido. Ex-motorista de caminhão, era nosso vizinho e vivia sempre desocupado, fazendo artesanalmente utensílios de couro. Teve filhos até perto dos 60 anos. Como meus pais batizaram um deles, ficou sendo o Compadre Futrica. Para toda a cidade.
Passava o dia em nosso armazém, mexendo com todo mundo. Adotou nossa família e meu pai acabou sendo a única autoridade que ele reconhecia. Pobre, quando morreu, foi enterrado com uma camisa de meu pai.Herança
Quando compramos o armazém, no começo da década de 70, levei um susto. Junto tinha vindo um velhinho, que dormia num canto do barracão, numa cama de campanha.
Era essa a lógica daquele mundo. Herdávamos os velhos, os trânsfugas, os bêbados e os solteirões, para a alegria e a dura aprendizagem das crianças.



