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Quando abro a loja, no início da manhã, sinto uma grande paz. Os televisores estão me esperando. Como a loja é pequena e há uma infinidade de aparelhos, eles tomam conta de tudo – do balcão de atendimento, do chão da entrada, das prateleiras. Muitos clientes não buscam o que lhes pertence por não compensar o conserto. E como existem modelos novos parcelados em dezenas de vezes, eles abandonam os antigos assim que são informados, por telefone, do preço do meu serviço.

– Não precisa arrumar. Amanhã passo aí para retirar.

Mas poucos retiram e só alguns autorizam o meu trabalho.

– Você não tem uma oficina de aparelhos eletrônicos – me disse ontem minha mulher.

Fiquei em silêncio. Era como se o meu áudio não estivesse funcionando. Mas ela continuou assim mesmo.

– Você tem é um lixão. As pessoas simplesmente descartam as velharias aí na loja.

Eu me mantive fora do ar.

– Se eu não trabalhasse, e trabalhasse muito, não teríamos nada.

E ela apagou a luz do quarto, como se o foco de imagem tivesse queimado.

Hoje, vim para a loja pensando: "Vou me livrar deste estoque incômodo". Faço o trajeto a pé, pois minha mulher fica com o carro para pegar as crianças. "A partir de agora ninguém poderá mais deixar indefinidamente os televisores aqui. Orçamento na hora e só fica se houver pagamento adiantado".

Engraçado, vamos construindo tantos planos antes de nos confrontarmos com as pessoas, quer dizer, com as coisas. Diante delas, esquecemos de tudo.

Abri a loja e me acalmei. Pra que mudar? Sou feliz assim. Gosto de estar rodeado pelos modelos antigos. Tenho aqui desde pequenos exemplares, do tamanho de rádios, até os caixotões que pesam muito.

Semana passada, um homem veio com o filho trazer uma tevê de 29 polegadas. Estava no banco traseiro de um carro popular. Nós dois penamos para retirar aquele trambolho. O filhinho, que não devia ter ainda três anos, brincava de nos ajudar. Quando carregamos a tevê para a loja e o menino entrou na sala tomada de outros aparelhos, ele ficou com um olhar encantado.

– Descobri onde elas moram, papai.

Nós rimos. Mas ele foi embora chorando.

– Não quero que ela durma aqui. Ela não é amiga das outras.

Parei com o serviço, fiz um orçamento bem básico, quase só as peças, e logo liguei para o dono, que autorizou o meu trabalho, e no mesmo dia fui entregá-la na casa deles.

O menino me olhou com olhos agradecidos.

Nesta manhã aqui na loja, lembrando do menino, eu me sinto realizado, pois semeei alguma alegria.

Assim que chego, a primeira coisa que faço é ligar os aparelhos que estão funcionando. Deixo sem som, e os coloco em canais diferentes. É como se eu estivesse em vários lugares. Como quase ninguém entra na loja, vou fazendo minhas obrigações em silêncio.

Tenho que entregar dois aparelhos ainda hoje. Abro a caixa da primeira tevê, que já está sobre a bancada. Há um cheiro bom de coisa eletrônica. Um perfume que me fica nos dedos. Trabalho alegre, desviando os olhos para algum programa. O cinema mudo não acabou, eu penso.

Toca o telefone. Digo um alô alegre.

– Já voltou a falar? – é minha mulher.

– Achei o defeito – respondo.

– Sei que sua audição é boa. Então ouça: quero me separar. Não suporto mais essa situação. Você não me ajuda com as crianças. Não tem nem mesmo uma palavra para elas. E vou ser sincera, você está cada dia mais abobado. Já não consigo nem olhar para a sua cara. Procure um lugar para você. O mais rápido possível.

– Já tenho o meu lugar – eu digo.

– Que bom – ela conclui, desligando o telefone.

Era para eu ficar triste, mas me sinto como se tivesse acabado de arrumar um aparelho.

Num dos canais, está passando um programa que ensina a fazer pratos rápidos e gostosos. Ideal para homens sozinhos. Presto bastante atenção. Mesmo sem som, aprendo a preparar algumas massas, embora pretenda comer em restaurantes. Vou comprar um colchonete e dormir aqui na loja.

Estou em meio a estes planos quando entra uma mulher com uma tevê nos braços. Corro para ajudá-la. Juntos, nós a colocamos num dos poucos lugares livres do balcão.

– Naquela tempestade forte de ontem, e que veio de uma vez, não tive tempo de puxar a tomada da tevê.

E nós dois olhamos amorosamente para a vítima.

– Quais os sintomas? – eu brinco.

– A imagem sumiu. A tela fica toda preta. Mas o áudio está perfeito.

– Vamos ver isso já.

Pego as ferramentas e começo a agir. Vai atrasar as outras tarefas, mas não importa. Uma tevê sem imagem é algo antinatural.

Depois de mexer uns vinte minutos, a moça ali em pé, olhando os programas, eu termino.

– Era só o transístor – anuncio.

– Quanto vai ser?

Digo um valor meio baixo.

– Podemos testar? – ela pergunta.

Eu ligo o cabo do sinal e o da energia.

Com a ajuda de um dos controles, a imagem volta, perfeita. Vou zapeando pelos canais.

– Mas agora ela está sem som?

– Eu é que abaixei.

Daí aumento o volume um pouco, para provar que está tudo bem. Ela me paga, e eu carrego a tevê até o carro.

– Olha, dá uma segurança saber que ainda existe gente que conserta os aparelhos – ela diz.

Depois, entra no carro e vai embora, acelerando muito. Mas noto que procura por algo no espelho retrovisor.

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