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Miguel Sanches Neto

Um menino toca flauta no metrô

Uma revista me perguntou quais meus planos para o ano de 2007. Respondi qualquer coisa que agora não me vem à memória. Mas tenho um grande objetivo para este ano. Uma coisa que não cabe em minha agenda; para realizá-la terei que aproveitar cada momento livre, levantando ainda mais cedo – sou um madrugador incorrigível. É algo tão grandioso que temo divulgar. Vá lá: gostaria de ler as mais de 1.600 páginas dos diários de Adolfo Bioy Casares sobre outro escritor argentino contemporâneo seu – Borges (Buenos Aires: Destino, 2006). Talvez seja a obra mais importante publicada no Ocidente no ano que passou – dá conta dos comentários dos dois amigos, que se viram regularmente de 1931 até 1986, registrados pelo mais novo deles. Tem sido meu pós-doutorado em literatura e eu o faço sem licença, sem bolsa, mas também sem stress.

São leituras homeopáticas as minhas, pois há uma quantidade muito grande de material para reflexão. Nesta semana, chamou-me a atenção uma pequena passagem de 7 de outubro de 1956. Era um domingo.

Borges conta a Bioy que estava no metrô quando ouve uma criança falar. É um menino que se locomove com os pais, e lhes pergunta:

– Quanto falta para Palermo?

Os pais o ignoram, continuam sua conversa, indiferentes à curiosidade da criança que quer chegar logo ao destino, impaciente com a viagem subterrânea. Como toda criança, ela é insistente e pergunta de forma mais enfática:

– Quanto falta?

O desprezo de seus pais permanece. O menino sabe que eles não lhe darão a menor atenção. Poderia ficar triste, mas o menino ri e tenta novamente:

– Quanto flauta para Palermo?

Diante da barreira de comunicação, o menino resolve transformar o que era uma curiosidade em jogo e faz a troca da palavra falta (de caráter negativo) por flauta (altamente positiva), criando certo nonsense, que lhe dá alegria. E logo dirá:

– Quanta flauta?

Constituindo assim um universo imaginário.

Ele se diverte com sua flauta feita de palavras, com o uso musical da língua, já totalmente esquecido da pergunta inicial.

Borges não consegue ver o menino – já estava com as vistas praticamente inválidas, mas o admira por ele estar fazendo a passagem da linguagem informativa para a lúdica. O desejo de interação se vê substituído pelo desejo de diversão.

Os comentários de Jorge Luis Borges são certeiros. Aquele "era um momento importantíssimo em sua vida [na do menino]. Estava descobrindo que havia palavras parecidas e que colocá-las juntas era algo divertido. Não: era muito mais – estava descobrindo a literatura" (p.219). Esta observação aponta para algumas questões.

A literatura é sempre uma atividade solitária. Nos seus domínios, a linguagem não tem a função interativa como prioridade, não serve apenas para nos colocar em contato com o mundo imediato, credenciando-nos para situações comunicativas. É algo totalmente independente do meio. O menino não consegue obter uma resposta, mas ela já não tem o menor valor. Ele se delicia com as variações que a língua permite, fazendo um uso pessoal dela, sem nenhuma utilidade, apenas pelo prazer gratuito de dizer.

O uso literário da língua terá sempre uma tendência para a deformação. Aprender a usar a linguagem corrente garante uma comunicação sem maiores turbulências, mas a sua versão literária introduz elementos que não estão a serviço de uma expressão racional, e sim passional. A língua, antes mera ferramenta, agora é música. O menino toca sua flauta no metrô, não participa do que ocorre num lugar monótono e cria algo inusitado, forjando uma bolha artística, em que a diversão vem de si mesmo, de seu poder de tirar de um instrumento interiorizado uma melodia qualquer.

É literária a relação com a linguagem quando ela nos possibilita uma satisfação pessoal, independente da validação coletiva. O menino não encontra ressonância para suas perguntas, mas enche o metrô com sons de flauta, e a viagem rotineira e enfadonha se torna um momento mágico.

O contato com a literatura que não permitir esse desvio da língua e da realidade será sempre inócuo. É mais um falar sobre literatura do que uma experiência literária vivenciada. A escola deve estar atenta a esses momentos de descobertas, quando a criança passa do uso aplicado da língua para o criativo.

Na minha própria trajetória, houve um processo parecido. Vim de uma família onde as crianças não tinham direito a voz. Por mais que perguntássemos algo aos adultos, eles ou desconversavam ou simplesmente silenciavam. Meu padrasto mesmo achava quase um insulto que os filhos se dirigissem a ele em público, era um homem sério demais para dar ouvidos à curiosidade infantil. Por mais que eu perguntasse algo, ele não respondia, nem me olhava. A língua como barreira, como um país distante.

Minha mãe exercia outra forma de autoritarismo. Ela se desligava das conversas e apenas contava as histórias dela. Histórias longas e cheias de detalhes, que nos encantavam, dela herdei o dom narrativo, mas não havia brechas para nós. Éramos mais ouvintes de seus casos.

Assim, fui criado num exílio comunicativo, pois na escola, durante a ditadura militar, pequeno era o espaço para expressão individual. O sentimento de exílio na linguagem deve ter contribuído para que eu me encaminhasse definitivamente para a literatura, que figurou como um território à parte, onde as palavras estavam a meu serviço e eu podia ordená-las ou desordená-las a todo momento.

Quando ouço falar que a função de um texto literário é permitir que os alunos se relacionem melhor na sociedade, fico um tanto assustado. A linguagem não pode ficar restrita à funcionalidade, ela é mais do que ferramenta, é também o caminho para a alegria conquistada solitariamente.

Sonho com uma escola onde os alunos possam fazer soar a flauta da linguagem.

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