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Miguel Sanches Neto

Um verso grosseiro

“Um idioma não tem etiquetas. E toda a literatura que se fizer literária, no sentido de enobrecer a linguagem, não será literatura.”

Lendo os comentários íntimos de Jorge Luis Borges, encontro uma deliciosa referência ao que ele chama de "o verso mais grosseiro" de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Leitor refinado, Borges era uma especialista neste livro e se diverte com a passagem brutal. Como não poderia deixar de ser, está no inferno, no final do canto XXI – verso 139. Dante, guiado pelo mestre, desdenha os demônios na sua caminhada rumo ao paraíso, deixando-os para trás. Estes olham para o seu chefe, que exprime sonoramente o desdém pelos dois viajantes:

"Ed elli avea del cul fatto trombetta."

Um verso irônico, popular, que quer provocar o riso no leitor. Mas como o assunto é de natureza escatológica, sendo uma convenção entre nós que somente os estados mais elevados podem ser poéticos, e como os nossos tradutores sonham ser mais clássicos do que os clássicos, Cristiano Martins traduziu o verso de maneira quase incompreensível:

"Como a uma tuba, à roda, sopros dando".

Dá vontade de rir do temor do tradutor em enfrentar o poema com as veras palavras de Dante. O verso ficou pedante. Perdeu todo o humor. Desfez-se a situação de resposta marota do chefe dos demônios, que queria significar apenas que ele não estava nem aí.

Procurei uma tradução em prosa do mesmo verso, a de Hernâni Donato, onde há uma fidelidade maior ao original, mas sem renunciar de todo ao desejo de suavizar a grosseria de Dante, esse escritorzinho inconveniente. A tradução alonga o desfecho, tirando dele a surpresa:

"Este, porém, voltando-lhes as costas, do seu traseiro fazia trombeta."

Menos enigmático, mas ainda não ousa usar a palavra que sujaria o livro. O verso é prosaico, não é preciso nenhum malabarismo para traduzi-lo, basta enfrentar o vocabulário realista do poeta. Aí vão o conteúdo e a linguagem certa, em espanhol, para não provocar a revolta de algum leitor mais puritano, pois vivemos uma idade de moralismos histéricos:

"Y él hizo de su culo una trompeta."

O chefe dos diabos saiu soltando uns puns. Querem descaso maior? Esta fala agressiva do corpo põe um fecho à situação em que os demônios são vencidos. Muitos de nós talvez confessassem já ter sentido vontade de agir assim na hora de encerrar alguma discussão. Deixar que o nosso ventre emitisse tais desaforos, que soasse a tripa gaiteira, essa expressão deliciosamente popular para tal incon­­tinência.

Um idioma não tem etiquetas. E toda a literatura que se fizer literária, no sentido de enobrecer a linguagem, não será literatura. Manter esta conexão com as várias faces da linguagem viva é fortalecer a humanidade da comunicação. Não lemos para aprender bons modos, e sim para nos reconhecermos no outro.

O assunto de que se ocupa este cronista talvez seja um dos mais censurados da literatura. Foi com alegria que li, no recente volume de Dalton Trevisan (Desgracida, 2010), a historieta intitulada "Pum". Na piada, esta temática é muito recorrente, enquanto na escrita dita séria ela quase não aparece. Dalton Trevisan, com sua obra vinculada à existência de personagens comuns, amplia a presença do tema.

Lembro que, antes dele, Fausto Wolf – que Deus o tenha no paraíso etílico dos inconformados! – não foi menos irreverente. Em A milésima segunda noite, na de número 205, ele conta a história de um casal que se conhece no elevador de um prédio de elite. Depois que o homem bem apessoado larga um pum, entra uma mulher e pergunta:

"Foi o senhor que fez isso?"

"É claro, minha senhora. Ou acha que eu cheiro assim o tempo todo?"

Diálogo delicioso que desarma madame. Lá pelo 15º. andar, esta pede autorização para cometer a mesma indelicadeza. E isso cria uma intimidade total entre eles: "Casaram-se alguns meses depois" – conclui Fausto Wolf. Se houvesse uma moral, esta poderia ser: o amor é o momento em que se peida inocentemente na frente do outro. Haveriam então um pum enamorado, que une pessoas e não as afasta.

No modelo social asséptico que adotamos, este tipo de as­­sunto deve causar repugnância nos leitores mais sensíveis. Mas, no íntimo, todos mantêm uma relação intensa com os próprios cheiros.

Lembro-me que, quando éramos internos no colégio agrícola, os meninos mais gaiatos liberavam suas ventosidades sob as cobertas, isolando-se nelas, para saborear sozinhos os odores. Existe expressão maior de amor próprio? Zombávamos desses amigos dizendo que eles eram os egoístas em pessoa, não repartiam nem os subprodutos gasosos de seus alimentos.

Muitos anos depois, lendo o Alberto Manguel de Os livros e os dias, um volume de crítica literária, encontro a citação de um provérbio islandês usado pelo poeta W. H. Auden: "Todo ho­­mem aprecia o cheiro de seus próprios peidos". Muito mais do que perversão escatológica, Auden expressa o processo comum de justificarmos quem somos, enobrecendo nossos atos, reforçando o auto-engano tão comum numa idade de individualismos, em que temos que pacificar nossa consciência. O poeta não poderia usar imagem mais forte.

Como sua matéria é a vida em toda a sua complexidade, não há regiões lingüísticas proibidas na hora de escrever um texto que queira representar o ser humano. E, muitas vezes, as palavras mais grosseiras são as que dizem mais, porque dizem de forma contundente, em alto e bom som.

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