
Dia do Natal, 12 horas. O lugar fica irreconhecível e a rua está completamente deserta. É a Avenida Luiz Xavier, a Boca Maldita curitibana. Não se ouve burburinho algum, a impressão que se tem é que algo cataclísmico aconteceu e o povo desapareceu como por encanto. Isto acontece somente duas vezes por ano, a primeira na manhã do dia do Natal e a segunda, também até o meio do dia, no ano-novo.
De câmera em punho, viajo a cidade nesses dias. Imagens de ruas e praças desertas mostram uma cidade fantasma, bem ao meu gosto. Fotografias comparativas com as imagens do passado, livre de transeuntes, onde são ressaltados os detalhes do ambiente com os prédios livres de interferências causadas pela presença humana.
Ali está a Boca, nua e crua. Ambiente livre para recordações, franqueado exclusivamente aos fantasmas dos antigos freqüentadores. Velho! Isto aqui é um atraso de vida! Aqui é o Largo da M...! É a alma do delegado Miranda Assy retornando com a sua assertiva sobre o lugar. De repente outros fantasmas vão surgindo, o Abrão Fucks retorna meio capenga: Fui eu quem batizou isto aqui de Boca Maldita! Os fantasmas vão surgindo. O Gauchinho comenta os fatos políticos que estão ocorrendo no além. O engraxate Mudinho em seu reluzente uniforme novo, prestando continências a todas assombrações presentes. Outro engraxate, o Pernambuco, desfila com reluzentes sapatos em seus pés agora normais.
Os degraus do posto bancário automático estão tomados por espectros de freqüentadores de saudosas memórias e de outros já esquecidos. Os cafés estão fechados; entretanto, as aparições circulam livremente através das portas de aço e formam rodinhas, onde os bate-papos são inaudíveis. O propagandista Saca-rolha transita portando o seu guarda-chuva fechado e com a chupetinha de boneca pregada nas costas do paletó. O negro Bataclan passa flutuando apressado vestindo um calção dourado.
As aparições aumentam e entre elas circula, com a mão em palma em uma orelha, o Ouvidor Pardinho com seu espectro miúdo e olhar atento. A avenida está lotada, parece que até os prédios voltam ao passado, os saudosos cinemas e os antigos bares bruxuleiam com suas fachadas. A mistura é espetacular, os trajes mostram as idades dos participantes daquele festival de aparições.
A impressão que se tem é que ali não falta ninguém, todo pessoal que está do outro lado, antigos freqüentadores da Boca Maldita, quando vivos, desfilam pela avenida como nos seus velhos tempos. Entretanto, faltava alguém, e eis que surge, vindo da Rua Quinze, com passos miúdos e apressadinhos, meio que fugindo do alcance da Gilda, agora um travesti deslumbrante. Aparece a figura inconfundível do Esmaga que estanca em meio ao monumento da Boca Banguela e, botando as mãos em concha na sua também desdentada boca, grita: Seus currupitos! Foi o único som emitido por uma aparição, o eco rebatia ainda nas fachadas dos prédios, os assombrados fantasmas desapareceram tão de repente como tinham surgido. A paz continuou na Boca pelo resto do dia.
Voltando ao presente, continuo a fotografar o ambiente. Passa o ônibus com plataforma descoberta onde se aboletam alguns turistas: Feliz Natal! nos saúdam, seguindo em frente para conhecerem Curitiba que, diga-se de passagem, está num dos seus melhores dias para fazê-lo.









