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Cultura

Coré-Etuba encontra Kakané-Porã

Em duas semanas, índios da Reserva Cambuí – uma ocupação irregular – se mudam para o Campo de Santana, onde oficializam a primeira aldeia urbana do Sul do Brasil

Parte da comunidade do Cambuí reunida: com as cestas prontas para se mudar para o Campo de Santana | Valterci Santos/Gazeta do Povo
Parte da comunidade do Cambuí reunida: com as cestas prontas para se mudar para o Campo de Santana (Foto: Valterci Santos/Gazeta do Povo)
Renh-ga- Jovina, a Renh-ga, trabalhou em restaurantes, mas logo voltou às bases de sua cultura, lidando com plantas medicinais e artesanato. É vice-cacique e fundou uma associação de mulheres índias |

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Renh-ga- Jovina, a Renh-ga, trabalhou em restaurantes, mas logo voltou às bases de sua cultura, lidando com plantas medicinais e artesanato. É vice-cacique e fundou uma associação de mulheres índias

Kajer- Carlos, o Kajer, trabalhou na construção civil. Hoje, dedica-se à aldeia urbana. Em Kakané-Porã (foto), sonha criar um viveiro de mudas e fundar um centro turístico. Curitiba precisa ir até lá |

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Kajer- Carlos, o Kajer, trabalhou na construção civil. Hoje, dedica-se à aldeia urbana. Em Kakané-Porã (foto), sonha criar um viveiro de mudas e fundar um centro turístico. Curitiba precisa ir até lá

A Rua Delegado Bruno de Almeida corta três grandes bairros de Curitiba – o Tatuquara, o Campo de Santana e a Caximba. Parece não ter fim. Também parece infinita a diversidade dessa via pública. Na sucessão de curvas, vê-se não só caminhões rumo ao Aterro Sanitário, mas casas de madeira antigas, hortas imensas, mansões de cinema, ocupações irregulares e loteamentos monótonos. Entre um espaço e outro, ainda é possível encontrar um bosque de araucárias.

Em dez dias, a Bruno de Almeida vai ganhar mais uma variação para o tema – a aldeia Kakané-Porã, na qual vão morar 35 famílias indígenas, algo próximo de 150 pessoas, de duas etnias – caingangues e guaranis, além de descendentes dos xetás, hoje em extinção. Para quem passa na altura do número 5.420 – no Campo de Santana – a impressão é de que se trata de mais um dos muitos conjuntinhos da Cohab. Mas o portal com toras de madeira e a visão de uma taba confirmam que aquele lugar é diferente. É o que se espera.

Os caminhos que levaram ao erguimento de Kakané-Porã formam uma curiosa crônica urbana. E não se pode entendê-la sem passar pelo Cambuí, no Uberaba, área de 28 alqueires onde os indígenas estão agora à espera do caminhão de mudança.

No início da década, um grupo que vivia na chamada Aldeia Velha, na BR-277, decidiu ocupar a Reserva Ecológica do Cambuí, na Avenida Comendador Franco, próximo a São José dos Pinhais. O local – uma área de mata, às margens do Rio Iguaçu – servia de centro de pesquisa para o ambientalista João José Bigarella, da UFPR. Em pouco tempo, tornou-se o abrigo de índios que migravam do interior para a capital e encontravam aqui duas escolhas – pernoitar na rodoviária ou enfrentar as agruras das favelas.

No Cambuí, os índios acabaram encontrando não só um teto para as noites de sereno, mas um pretexto para fundar a primeira aldeia urbana do Sul, o que parecia possível até então apenas em cidades com grande população indígena, como Campo Grande e Manaus. O modelo, claro, foge ao tradicional conceito de reserva. Os inquilinos do Cambuí tiveram de equacionar a condição de índio e a de morador com contas a pagar.

Ali, crianças e adolescentes – cerca de 45% da comunidade – freqüentam escolas do Uberaba, deixando de ser para os coleguinhas uma fotografia no livro de Geografia. Os adultos, em sua maioria, vivem de artesanato, vendido em espaços como a Feira do Largo da Ordem, dividindo o comércio com outros ambulantes. Em miúdos – são pobres, informais e dependentes dos serviços públicos. "Eles mantêm o espírito coletivo. Mas vivem em condições indignas no espaço urbano", pondera o indigenista Edívio Batistelli, 54 anos, 31 dedicado à defesa dos 14 mil indígenas paranaenses.

À primeira vista, parece de fato não haver diferença entre a gente do Cambuí e os do Icaraí, favela do Bolsão Audi-União da qual a tribo é vizinha. Mas basta entrar na picada de mata às margens do Iguaçu para, digamos, descobrir o Brasil. As crianças brincam livremente no terreiro e as moradias são integradas, no melhor do estilo povos da floresta. Em contrapartida, vê-se carros, motos, cartazes de ídolos pop, sinais da cultura evangélica – tudo convivendo com adornos de pau-brasil, colares de kakupri e utensílios de embira.

Além do delicioso mix do tribal e do urbano, a experiência do Cambuí abalou algumas práticas tão tradicionais quanto ouvir o canto do uirapuru. O espaço é multiétnico, irmanando, inclusive, etnias que no passado eram inimigas. Também é, digamos, transgênero. Há seis meses, o cacique Carlos Luiz dos Santos – o Kajer – divide a liderança do seu povo com Jovina Donato de Oliveira, a Renh-ga, ambos com 40 anos e caingangues.

Mulher no poder era um feito inimaginável para as nações – as tupis e as outras. As índias são educadas para o silêncio. São muitos os filhos a criar e as espigas de milho a ralar. Era o plano de Jovina, até vir de Marrecas para a cidade grande. Tinha 19 anos e estudou. Nos cursos de capacitação aprendeu a falar em público e chegou a ingressar na faculdade de Engenharia Ambiental na UFPR. Claro – ela não está navegando a bordo da vitória-régia. "O machismo ainda é muito forte", diz Alcino de Almeida, 52 anos, antecessor de Jovina no posto. "Mas ela foi eleita a nosso modo – com feijão preto e feijão branco usado como cédula. Pode-se ficar no cargo um dia ou uma vida. Basta fazer um bom trabalho."

Alcino, aliás, é outra boa tradução das aldeias urbanas. Formado em Direito, poderia ter dado adeus às rodas de fogueira. Mas se viu às voltas com a ocupação do Uberaba. Junto com Kajer, criou um programa de atendimento a escolares, o que ajudou a romper o isolamento da tribo, e organizou o plantio de dez mil mudar de plantas nativas no bosque. Essa e outras estratégias, contudo, esbarraram num mal de raiz: o Cambuí não é a terra sem males.

Além de se tratar de uma Área de Proteção Ambiental (APA), o local é insalubre. À umidade, some-se a precariedade das instalações. O prédio tem apenas dois banheiros e não difere muito das 258 favelas da cidade. A proximidade com a Avenida das Torres também beira a insanidade – recentemente, dois jovens índios morreram atropelados antes de pisar na trilha que leva ao Cambuí.

Se esses motivos já são de pedir socorro, o estado de penúria da comunidade se encarrega do resto. Pesquisa feita pela Cohab-CT junto aos moradores pôs na berlinda a dificuldade dos índios em se integrarem ao mercado de trabalho. Os rendimentos familiares raramente ultrapassam R$ 500 mensais, com o agravante de que o artesanato – atividade mais comum – dá dinheiro só de vez em quando.

Uma única família pode produzir 30 mil peças num mês e nenhuma em outro. Esta dificuldade fez com que o grupo passasse a sonhar com um endereço onde pudesse ser feito um misto de espaço cultural e de cooperativa. A proposta da prefeitura de erguer uma aldeia no bairro Campo de Santana – a Kakané-Por㠖 acabou sendo vista como uma mensagem da selva.

A área de 44 mil metros quadrados, sendo 9,5 mil de bosque, vai abrigar 35 famílias – 15 delas até então dispersas pelos arrabaldes de Curitiba. "Não é um lugar perfeito, porque a área verde é pequena e índio gosta de mato, mas será mais fácil receber as pessoas aqui", aposta o cacique Carlos.

O desafio está lançado. Além de atrair os curitibanos até o Campo de Santana, a comunidade tem outro percalço pela frente: não ser engolida pelas mazelas da periferia, repetindo o destino de outras tribos urbanas. Que as biodiversas curvas da Rua Delegado Bruno de Almeida acolham o "fruto bom da terra" – significado de Kakané -Porã, em bom caingangue e guarani. Coré-Etuba agradece.

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