
A Rua Delegado Bruno de Almeida corta três grandes bairros de Curitiba o Tatuquara, o Campo de Santana e a Caximba. Parece não ter fim. Também parece infinita a diversidade dessa via pública. Na sucessão de curvas, vê-se não só caminhões rumo ao Aterro Sanitário, mas casas de madeira antigas, hortas imensas, mansões de cinema, ocupações irregulares e loteamentos monótonos. Entre um espaço e outro, ainda é possível encontrar um bosque de araucárias.
Em dez dias, a Bruno de Almeida vai ganhar mais uma variação para o tema a aldeia Kakané-Porã, na qual vão morar 35 famílias indígenas, algo próximo de 150 pessoas, de duas etnias caingangues e guaranis, além de descendentes dos xetás, hoje em extinção. Para quem passa na altura do número 5.420 no Campo de Santana a impressão é de que se trata de mais um dos muitos conjuntinhos da Cohab. Mas o portal com toras de madeira e a visão de uma taba confirmam que aquele lugar é diferente. É o que se espera.
Os caminhos que levaram ao erguimento de Kakané-Porã formam uma curiosa crônica urbana. E não se pode entendê-la sem passar pelo Cambuí, no Uberaba, área de 28 alqueires onde os indígenas estão agora à espera do caminhão de mudança.
No início da década, um grupo que vivia na chamada Aldeia Velha, na BR-277, decidiu ocupar a Reserva Ecológica do Cambuí, na Avenida Comendador Franco, próximo a São José dos Pinhais. O local uma área de mata, às margens do Rio Iguaçu servia de centro de pesquisa para o ambientalista João José Bigarella, da UFPR. Em pouco tempo, tornou-se o abrigo de índios que migravam do interior para a capital e encontravam aqui duas escolhas pernoitar na rodoviária ou enfrentar as agruras das favelas.
No Cambuí, os índios acabaram encontrando não só um teto para as noites de sereno, mas um pretexto para fundar a primeira aldeia urbana do Sul, o que parecia possível até então apenas em cidades com grande população indígena, como Campo Grande e Manaus. O modelo, claro, foge ao tradicional conceito de reserva. Os inquilinos do Cambuí tiveram de equacionar a condição de índio e a de morador com contas a pagar.
Ali, crianças e adolescentes cerca de 45% da comunidade freqüentam escolas do Uberaba, deixando de ser para os coleguinhas uma fotografia no livro de Geografia. Os adultos, em sua maioria, vivem de artesanato, vendido em espaços como a Feira do Largo da Ordem, dividindo o comércio com outros ambulantes. Em miúdos são pobres, informais e dependentes dos serviços públicos. "Eles mantêm o espírito coletivo. Mas vivem em condições indignas no espaço urbano", pondera o indigenista Edívio Batistelli, 54 anos, 31 dedicado à defesa dos 14 mil indígenas paranaenses.
À primeira vista, parece de fato não haver diferença entre a gente do Cambuí e os do Icaraí, favela do Bolsão Audi-União da qual a tribo é vizinha. Mas basta entrar na picada de mata às margens do Iguaçu para, digamos, descobrir o Brasil. As crianças brincam livremente no terreiro e as moradias são integradas, no melhor do estilo povos da floresta. Em contrapartida, vê-se carros, motos, cartazes de ídolos pop, sinais da cultura evangélica tudo convivendo com adornos de pau-brasil, colares de kakupri e utensílios de embira.
Além do delicioso mix do tribal e do urbano, a experiência do Cambuí abalou algumas práticas tão tradicionais quanto ouvir o canto do uirapuru. O espaço é multiétnico, irmanando, inclusive, etnias que no passado eram inimigas. Também é, digamos, transgênero. Há seis meses, o cacique Carlos Luiz dos Santos o Kajer divide a liderança do seu povo com Jovina Donato de Oliveira, a Renh-ga, ambos com 40 anos e caingangues.
Mulher no poder era um feito inimaginável para as nações as tupis e as outras. As índias são educadas para o silêncio. São muitos os filhos a criar e as espigas de milho a ralar. Era o plano de Jovina, até vir de Marrecas para a cidade grande. Tinha 19 anos e estudou. Nos cursos de capacitação aprendeu a falar em público e chegou a ingressar na faculdade de Engenharia Ambiental na UFPR. Claro ela não está navegando a bordo da vitória-régia. "O machismo ainda é muito forte", diz Alcino de Almeida, 52 anos, antecessor de Jovina no posto. "Mas ela foi eleita a nosso modo com feijão preto e feijão branco usado como cédula. Pode-se ficar no cargo um dia ou uma vida. Basta fazer um bom trabalho."
Alcino, aliás, é outra boa tradução das aldeias urbanas. Formado em Direito, poderia ter dado adeus às rodas de fogueira. Mas se viu às voltas com a ocupação do Uberaba. Junto com Kajer, criou um programa de atendimento a escolares, o que ajudou a romper o isolamento da tribo, e organizou o plantio de dez mil mudar de plantas nativas no bosque. Essa e outras estratégias, contudo, esbarraram num mal de raiz: o Cambuí não é a terra sem males.
Além de se tratar de uma Área de Proteção Ambiental (APA), o local é insalubre. À umidade, some-se a precariedade das instalações. O prédio tem apenas dois banheiros e não difere muito das 258 favelas da cidade. A proximidade com a Avenida das Torres também beira a insanidade recentemente, dois jovens índios morreram atropelados antes de pisar na trilha que leva ao Cambuí.
Se esses motivos já são de pedir socorro, o estado de penúria da comunidade se encarrega do resto. Pesquisa feita pela Cohab-CT junto aos moradores pôs na berlinda a dificuldade dos índios em se integrarem ao mercado de trabalho. Os rendimentos familiares raramente ultrapassam R$ 500 mensais, com o agravante de que o artesanato atividade mais comum dá dinheiro só de vez em quando.
Uma única família pode produzir 30 mil peças num mês e nenhuma em outro. Esta dificuldade fez com que o grupo passasse a sonhar com um endereço onde pudesse ser feito um misto de espaço cultural e de cooperativa. A proposta da prefeitura de erguer uma aldeia no bairro Campo de Santana a Kakané-Porã acabou sendo vista como uma mensagem da selva.
A área de 44 mil metros quadrados, sendo 9,5 mil de bosque, vai abrigar 35 famílias 15 delas até então dispersas pelos arrabaldes de Curitiba. "Não é um lugar perfeito, porque a área verde é pequena e índio gosta de mato, mas será mais fácil receber as pessoas aqui", aposta o cacique Carlos.
O desafio está lançado. Além de atrair os curitibanos até o Campo de Santana, a comunidade tem outro percalço pela frente: não ser engolida pelas mazelas da periferia, repetindo o destino de outras tribos urbanas. Que as biodiversas curvas da Rua Delegado Bruno de Almeida acolham o "fruto bom da terra" significado de Kakané -Porã, em bom caingangue e guarani. Coré-Etuba agradece.





