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É o terceiro dia que não vem. Deveria sentir-se aliviado por estar sozinho, comemorar a reconquista da liberdade ainda que provisória. A ausência torna-o mais presente ainda. Não consegue pensar em outra coisa a não ser nele. Nunca faltou uma tarde sequer. O que terá acontecido? Espia pela janela a todo instante. Já passam das duas. Costuma chegar antes, nunca depois. Isso significa que não virá hoje também.

Amanhã é dia de prova. Não consegue se concentrar para estudar. O cérebro gira numa velocidade vertiginosa, fora de controle. O pensamento vai e vem, retornando sempre ao ponto de partida. Segura a cabeça entre as mãos como se pudesse detê-lo.Teme estar ficando louco. Será o começo do fim ou uma nova forma de tortura?

Até três dias atrás tudo o que mais desejava é que sumisse para sempre da sua vida, que um raio caísse sobre ele, que seu corpo esturricado fumegasse feito carvão. Só assim poderia dormir sem sobressaltos, na certeza de que não retornaria no dia seguinte. Nem nunca mais.

O que será dele agora? Mesmo confuso sabe que não tem salvação. Em vez da felicidade tão sonhada depara-se com o vácuo deixado por alguém que se apossou da sua vida, e que num repente resolve sair sem nenhuma palavra.

Precisa desesperadamente conversar com alguém. Nomes e rostos desfilam diante dele. Nenhum lhe parece íntimo o suficiente para que possa confiar o seu segredo. Sua mãe? Deveria ter confiado nela lá atrás, no começo. É sacanagem fazer isso com ela agora.Trabalha numa loja de tecidos no centro da cidade onde os funcionários são proibidos de sentar mesmo que esteja às moscas.Some-se a isso o medo constante de perder o emprego depois que as roupas prontas made in China invadiram o comércio. Queixa-se de cansaço.

Mesmo assim, faz de tudo para que ele estude, tenha uma vida melhor que a dela.

Como aborrecê-la com seus problemas? Mentira! Sabe que não é só isso. A barreira que o impede de romper o silêncio é infinitamente maior do que o desejo de poupá-la.

Ouve um barulho no portão.Mal tem tempo de identificar o uniforme do carteiro que se afasta rápido, vergado sob o peso da sacola. Numa mistura de alívio e decepção chora convulsivamente. Sobre a mesa, livros e cadernos fechados. Esforça-se para demonstrar naturalidade. Ela sugere que descanse enquanto prepara o jantar. Ele lhe escapa antes que as lágrimas o denunciem.

Ah, como se odeia! Como pode ser tão idiota, tão imbecil? Encantado, aceitou o pacto sem saber direito do que se tratava. Considerava-se um garoto de sorte, muita sorte, por ser eleito seu confidente, por ter alguém respeitado como ele para protegê-lo das brincadeiras maldosas dos outros garotos da escola.

Na ingenuidade dos nove anos de um menino solitário, não viu motivos para omitir nada quando quis saber tudo sobre ele, onde morava, a sua rotina. "O segredo é a alma do negócio", dizia. E como bom negociante cercou-se de cuidados, só investindo quando teve certeza de que nada daria errado. Cheio de confiança foi tecendo a sua teia dia após dia pacientemente, como fazem as aranhas.

Durante o jantar mal toca na comida. Precisa dormir cedo. A mãe acorda sobressaltada ao reconhecer a voz do filho que se debate, luta com um adversário invisível. "Não, não, não quero! Chega, chega!" O outro continua a cavalgar sobre ele, num ir e vir incansável até que estremeça, tenha espasmos involuntários. "Seu mentiroso! Você goza sim, você gosta sim!". E só lhe dá descanso muito próximo à zona de segurança. Ele para de se debater, aquietando-se como os vencidos diante de uma batalha irremediavelmente perdida.

Arde em febre. Três dias depois aparentemente recuperado de mal não identificado volta a freqüentar as aulas. Os olhos ansiosos procuram por ele, que indiferente à sua presença, brinca com um aluno novo louro e delicado como ele. Tem ímpeto de correr, avisar o menino. Paralisado não consegue dar um passo, emitir um som. O coração se agita, martela o peito com vigor. Na sua cabeça passa um filme inacabado que reprisa há três anos na sessão da tarde, de segunda a sexta-feira. Ator coadjuvante aguarda o destino do seu personagem.

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