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Para afiar os dentes, tribos indígenas do Paraná usam uma faca afiada e uma pedra que, ao bater na lâmina, tira lascas do esmalte | Fotos: Josue Teixeira/Gazeta do Povo
Para afiar os dentes, tribos indígenas do Paraná usam uma faca afiada e uma pedra que, ao bater na lâmina, tira lascas do esmalte| Foto: Fotos: Josue Teixeira/Gazeta do Povo

Técnica tende a desaparecer por preconceito

Segundo o indigenista paranaense Edívio Battistelli, além da Reserva de Queimadas, esse é um fenômeno que se repete em, pelo menos, outras três comunidades caingangues do Paraná: a Reserva Rio das Cobras (em Nova Laranjeiras), a Reserva de Marrecas (Turvo) e a Reserva Ivaí (em Manoel Ribas). "É algo que está ficando raro, mas alguns indivíduos ainda fazem. Depois que caem os dentes de leite e nasce toda a segunda dentição, o adolescente tem os dentes frontais cortados em forma de serra. Mas isso está se tornando raro", conta.

Numa comunidade de aproximadamente 500 moradores, Fernandes Lourenço conhece cerca de dez pessoas que tiveram a mesma coragem que ele, a maioria com mais de 40 anos de idade. Segundo Lourenço, há pouco mais de 20 anos, quando teve os dentes esculpidos, escovas e pastas de dente ainda não eram artigos tão comuns nas casas da reserva. Com isso, o aguçamento era uma forma de tornar mais fácil a limpeza dos espaços entre os dentes. "Quase não tem mais isso. Um dos que faz ainda é o tio que cortou para mim, o João Batista. Ele acabou de fazer no meu primo de 14 anos, filho dele", conta.

A mulher de Fernandes, Isalina Lourenço, de 37 anos, também apontou os dentes, por influência do pai. Ela aprendeu a técnica e fez o corte para algumas pessoas de Queimadas, mas há dez que parou de fazer. "Também não quero fazer nas minhas filhas. Eu achava bonito mas, quando fui estudar na cidade, algumas pessoas riam de mim por eu ter dente de "piranha". Não quero que elas passem por isso também", relata.

  • Dentes encontrados em antigos cemitérios ajudam a explicar a origem do costume
  • O indígena Lourenço afiou os dentes há cerca de 20 anos: limpeza seria mais fácil

Um entra com a faca, a pedra e as mãos. O outro, com a boca aberta e alguma dose de coragem. Pacientemente, bate-se a pedra nas costas da lâmina, cujo fio está encostado no esmalte dos dentes até que os quatro incisivos superiores da outra pessoa fiquem completamente pontiagudos. Quando tinha 14 anos, o índio caingangue Fernandes Lourenço, hoje com 36 anos, achou que já estava na hora de seguir o conselho do tio. Fernandes é um dos pouquíssimos moradores da Reserva Indígena de Queimadas, em Ortigueira (Campos Gerais do Paraná), que ainda carrega essa característica. "Foi meu tio que fez pra mim. Ele disse que desse jeito ia demorar mais para cair, além de ser bonito", conta o rapaz.

O costume tem explicação histórica. Apesar de haver registros dessa prática entre comunidades pré-colombianas, especialmente nos povos da América Central e da região andina, os indígenas brasileiros são uma exceção. Segundo o arqueólogo Andersen Liryo da Silva, do Mu­­seu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a modificação dentária entre os índios brasileiros surge depois da chegada dos escravos africanos.

O pesquisador explica que parte deles veio de regiões da África onde esse costume já existia, com cortes em diversos formatos, entre eles o formato de serra. Uma das diferenças entre os dois casos é que, entre os africanos, a técnica mais comum é a de cinzelamento, em que a lâmina vai retirando pequenas lascas de dente e dando acabamento. Entre os indígenas brasileiros, o mais comum são pancadas um pouco mais fortes. Já a técnica de limagem (ou raspagem) foi mais encontrada entre os povos pré-colombianos andinos e da América Central e dava um acabamento mais bem definido em relação às demais.

Surgimento

"Entre os indígenas brasileiros, os dentes de "piranha" [mutilados em forma de pontas] são os únicos tipos ainda hoje encontrados. A mutilação só é feita nos quatro dentes incisivos superiores", afirma. No entanto, Liryo esclarece que a adoção do costume pelos indígenas não foi algo imediato. "Hoje levantamos a hipótese de que a transmissão da prática não tenha ocorrido do contato direto entre os negros escravos e os indígenas, como os antigos autores diziam, mas por meio da população pobre e livre (sertanejos) que era enviada para abrir frentes de colonização", explica.

Esta opinião é compartilhada pela bioantropóloga da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz Sheila Mendonça. Segundo ela, o costume de modificar os dentes entre os escravos não era bem visto pela elite, tornando-se cada vez menos recorrente com o passar do tempo. "No entanto, a prática ressurge entre os sertanejos da bacia do Rio São Francisco, no século 19, justamente no formato pontiagudo. Mas ainda é preciso investigar como se deu essa retomada. É uma história que ainda não foi contada", destaca.

Sheila afirma que, além dos caingangues, também há registros relativamente recentes (primeira metade do século 20) da modificação dentária, nesse mesmo padrão de corte, entre os ticunas e os guajajaras, ambos da região da Floresta Amazônica.

Cemitérios explicam a origem do costume

Dentes isolados e algumas arcadas completas encontrados em escavações de antigos cemitérios estão sendo uma importante chave de pesquisa para estudar a prática de modificação de dentes. Ao contrário do padrão dominante entre os indígenas e sertanejos brasileiros, estudos realizados vêm demonstrando que os escravos africanos faziam cortes variados. É o que concluiu o trabalho do arqueólogo Andersen Liryo da Silva, do Museu Nacional da UFRJ. Ele analisou 122 dentes modificados de um total de 3 mil encontrados no cemitério da antiga Igreja da Sé de Salvador (BA), fundada em 1552 e demolida em 1933.

O local foi escavado entre 1998 e 2001 e foram achados diversos esqueletos provenientes de sepultamentos realizados até metade do século 19. Liryo explica que os dentes modificados foram encontrados no adro (subsolo do lado de fora da igreja), onde eram enterrados os escravos e as demais pessoas que não tinham condições de comprar uma sepultura sob o chão da igreja. Um ponto da análise, em especial, chama a atenção: a variedade de formatos de corte. Foram encontrados dentes esculpidos em forma de "V" invertido, arredondada e até mesmo com contornos quadrangulares.

Reconhecimento

Segundo Silva, isso demonstra, sobretudo, uma forma de as pessoas de um mesmo grupo se reconhecerem entre si e, também, perante os outros. "Os dentes de ‘piranha’, por exemplo, foram encontrados em diversos povos. Entre os guerreiros calabares, do antigo Reino de Benin, os dentes eram apontados para fazer os homens parecerem mais valentes. Em um mesmo povo poderiam existir diferentes motivos para a mutilação dentária", avalia.

A bioantropóloga Sheila Mendonça analisou dentes e arcadas encontradas no Cemit­ério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro. Segundo ela, durante a reforma de uma casa no bairro da Gamboa, foram encontradas, acidentalmente, ossadas humanas. No local, durante aproximadamente 60 anos (entre 1769 e 1830, segundo estimativas) foram enterrados escravos que morriam no Mercado do Valongo, onde seriam vendidos, mas que faleciam doentes pouco depois de desembarcar dos navios negreiros.

Entre 570 dentes examinados, 13 apresentavam modificações, todos incisivos, a maioria da arcada superior. "Os cortes que foram estudados apresentam um mesmo padrão, curvilíneo e bem acabado", salienta. No entanto, Sheila afirma que isso não significa que os escravos de Pretos Novos vieram de um mesmo lugar. "Os dentes avulsos modificados que foram encontrados devem pertencer a alguns poucos indivíduos de uma mesma origem. Análises mais apuradas destes e dos outros dentes apontam para uma grande variedade de regiões de origem desses africanos", assinala.

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