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Graças ao milagre da internet acompanhei as palestras da 10.ª Flip, a Feira Internacional de Literatura de Paraty, de longe, ao vivo e em cores – e, no caso dos autores estrangeiros, com tradução simultânea. O que é fantástico – um encontro que todos os anos inclui alguns dos mais importantes autores do mundo e faz uma amostra da literatura brasileira pode ser visto em tempo real em qualquer parte da Terra (meu entusiasmo denuncia a idade: sou do tempo do fogão a lenha).

Ao mesmo tempo, poucos eventos culturais despertam reações tão contraditórias quanto a Flip, desde que, há dez anos, ela fez de Paraty uma das capitais mundiais da literatura. Recorrendo à polarização proposta por Umberto Eco décadas atrás, há os apocalípticos e os integrados. Para os primeiros, a Flip é um show midiático patrocinado pelas grandes corporações da vida editorial, uma prova de como o capitalismo compra e corrompe tudo – e podemos encontrar sinais de "apocalipse" até no insuspeito escritor Jonathan Franzen (capa da Time como "o romancista da América"); em sua palestra lembrou que, ao chegar a Paraty, encontrou placas enormes com propaganda de um cartão de crédito – e, sussurrou, conspirador, "isso já diz muita coisa". Os americanos também adoram falar mal do dinheiro.

Franzen é um realista de carteirinha. Mas outro grande escritor, este de vocação nefelibata, o espanhol Enrique Vila-Matas, denuncia com uma certa volúpia a "extinção da literatura", entregue hoje ao horror das leis do mercado. Bem, não tomemos ao pé da letra a afirmação, uma licença poética transcendente – segundo o clássico gosto ibérico, a realidade é uma consequência do desejo, e não o contrário. A ideia apocalíptica pressupõe uma utopia poética, mas também política, redentora e pura, onde a arte, enfim, brilhará como um diamante intocado pelo mundo real.

Enquanto isso não acontece, os integrados leem livros, pedem autógrafos, lotam as tendas da Flip, bebem cachaça, passeiam pela cidade histórica, conversam fiado, odeiam alguns autores e amam outros; há um clima de devoção e um culto das celebridades que faz parte do pacote (a diária num hotel de Paraty durante a Flip é uma das mais caras do mundo).

Como não sou mais apocalíptico e nunca fui integrado a nada, digo apenas que a Flip representou um salto espetacular na valorização do livro no Brasil. O impacto do evento multiplicou-se nos últimos anos em centenas de festas literárias pelo país. A Flip consegue transformar a literatura em notícia, numa escala nunca vista aqui. E vem colocando o Brasil – que literariamente não existe lá fora – no mapa do mundo. Num país iletrado, o efeito cascata do encontro em Paraty é inegável. E, para que não se perca a medida das coisas, basta separar as águas: saber que festas não são literatura e escritores não são atores. Nada substitui o silêncio da leitura – mas que mal há em festejá-la?

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