A ciência, que pergunta o "como" sobre o mundo, precisa dialogar com a religião e a filosofia, que perguntam o "por que", para a construção de uma ética sadia. Em entrevista à Gazeta do Povo, o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, um dos organizadores de Um diálogo latino-americano: bioética & documento de Aparecida, fala sobre o livro, sobre a atividade da Igreja Católica no campo da bioética e sobre a relação entre ciência e fé. Borba esteve em Curitiba na semana passada, convidado pelo Studium Theologicum para proferir uma palestra nas comemorações dos 75 anos da faculdade.
Qual é a proposta do livro, e por que usar o documento de Aparecida?
Nosso objetivo é fazer uma ponte entre ciência e religião usando a discussão sobre bioética e partindo do documento de Aparecida, que é o texto mais recente da Igreja Católica na América Latina. Em relação à bioética, o documento não chega a trazer grandes novidades: ele reafirma a posição católica de defesa da vida, dizendo "não" ao aborto e à eutanasia, mas é importante mostrar que não se trata de uma posição negativa. Os "nãos" são a consequência lógica de um "sim" maior, dado à vida, à beleza e ao amor.
Qual é sua avaliação sobre a ação da Igreja nos temas de bioética?
A Igreja no Brasil é muito ativa nos temas polêmicos, mas a mídia criou uma imagem muito reducionista da Igreja. A participação da CNBB em audiências no Legislativo ou no Judiciário aparece mais que as ações concretas em prol das pessoas. Quem lê jornal acaba pensando que a Igreja só sabe condenar as pessoas, mas no dia a dia a sua grande ação se dá nas experiências de acolhida. Esse tipo de atuação silenciosa, que é a mais extensa, fica perdida. Quando o Papa veio ao Brasil, ele disse que a questão do aborto, seja por que motivo for, sempre é uma questão de perda da esperança e da capacidade de ver a beleza da vida. Então, defender a vida significa ser capaz de retomar essa beleza e dar às pessoas uma esperança, um rumo. O Papa é muito mais propositivo que negativo.
Qual a legitimidade da religião qualquer uma, não apenas a católica para dizer o que se pode e o que não se pode fazer em termos de experimentos científicos?
Eu prefiro falar em legitimidade das ideias, seja quais forem. As ideias se definem pelo que têm de verdadeiro e adequado à realidade, e não por quem falou primeiro. Mas as ideias sobre bioética, de modo geral, padecem da noção de que a solução técnica resolve todos os problemas e de que o fato de termos a técnica para fazer algo tornaria esse algo permitido, lícito, bom ou recomendável. A técnica em si, por mais aprimorada que seja, não resolve os problemas. Ela tem de ser utilizada com sabedoria. O problema da ciência é que ela não é um conhecimento destinado a gerar sabedoria. A ciência pergunta como as coisas funcionam ou como podem ser modificadas ou utilizadas, mas não pergunta por que ou para que as coisas existem. Historicamente, quem responde melhor esse tipo de pergunta são as religiões. Na encíclica Caritas in Veritate, Bento XVI diz que a ciência e a técnica não tem por finalidade responder as perguntas sobre o sentido da vida. Então, uma ética que nascesse pura e simplesmente da ciência seria totalmente vã. A ciência precisa dialogar com os campos do saber que se perguntam sobre o sentido: a Filosofia e a Teologia.
Um argumento muito usado é o de que a Igreja está tentando impor suas convicções a um Estado laico.
Por muitos anos, a Igreja usou sua influência política para conseguir coisas na sociedade, mas a própria Igreja abandonou essa prática; então, a crítica atinge um tipo de comportamento que não existe mais. Hoje se usa esse raciocínio para neutralizar a influência da Igreja no debate. Bento XVI é muito consciente sobre o papel da Igreja numa sociedade laica e plural até mais que muitos defensores do Estado laico. A Igreja traz a mensagem de uma tradição de 20 séculos, na qual a sociedade ocidental cresceu e se desenvolveu. A civilização ocidental é filha dessa tradição, goste-se ou não, e essa tradição tem algo a dizer. As proposições da Igreja estão sujeitas ao debate racional no Estado democrático, mas o laicismo exacerbado dos nossos tempos nega a possibilidade do diálogo racional. Assim caímos na censura, na postura segundo a qual a Igreja não tem o direito de se pronunciar sobre certos assuntos, sem saber se o que ela tem a dizer é bom ou não.
Ano passado a encíclica Humanae Vitae, de Paulo VI, que reafirmava a proibição à contracepção artificial, fez 40 anos. Na ocasião, um médico espanhol a classificou como "profética", em vista de estudos ligando tipos de câncer em mulheres ao uso da pílula. É possível fazer esse avaliação?
Se olharmos com olhos de hoje a pertinência dos postulados da Humanae Vitae, vamos descobrir que praticamente todos eles, de alguma forma, se confirmaram. A maioria dos métodos artificiais de contracepção mostrou efeitos colaterais muito grandes e perigosos, enquanto o método natural evoluiu e se tornou cada vez mais eficiente. A população mundial está mais sedenta por soluções naturais há uma desilusão com a solução técnica que se reflete na busca por todo tipo de terapias alternativas. E tivemos, particularmente, a epidemia de aids.
Quanto à aids, o Papa causou furor com uma declaração em sua viagem à África.
Ele disse que o preservativo não solucionará o problema da aids na África. E, se existe um lugar no mundo onde a camisinha realmente não é a solução, esse lugar é a África. Em geral, trata-se de sociedades muito machistas, em que a mulher é vista como propriedade do homem, que por sua vez tem o "direito" de satisfazer sua sexualidade onde e quando quiser, com quem quiser. Ele se contamina com facilidade e passa isso para a esposa. Distribuir preservativos até protege da aids um homem não contaminado, mas é quase uma carta branca para ele continuar a ter o mesmo comportamento promíscuo. Ainda que todos usassem preservativo, o problema da aids estaria resolvido, mas não se teria avançado um milímetro na promoção da mulher. Só que nem todos usam, então a doença se espalha e a mulher continua desvalorizada. A Igreja quer não só o fim da epidemia, mas o respeito à mulher e à família. Em Uganda, a epidemia começou a ser vencida com uma campanha que colocava a abstinência e a fidelidade em primeiro lugar. Não é à toa que o maior especialista em aids da Universidade de Harvard, Edward Green, veio em defesa do Papa dizendo que ele tinha razão.
Leia mais
A íntegra da entrevista está no blog Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião. Clique aqui.
Um diálogo latino-americano: bioética & documento de Aparecida. Organizadores: Dalton Ramos, Francisco Borba, Francisco León, João Petrini. Difusão editora. R$ 39,90.



