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Entrevista

“Diálogo entre fé e ciência cria uma ética saudável”

Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP

“As proposições da Igreja estão sujeitas ao debate racional no Estado democrático, mas o laicismo exacerbado dos nossos tempos nega a possibilidade do diálogo racional. Assim caímos na censura” | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
“As proposições da Igreja estão sujeitas ao debate racional no Estado democrático, mas o laicismo exacerbado dos nossos tempos nega a possibilidade do diálogo racional. Assim caímos na censura” (Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo)

A ciência, que pergunta o "como" sobre o mundo, precisa dialogar com a religião e a filosofia, que perguntam o "por que", para a construção de uma ética sadia. Em entrevista à Gazeta do Povo, o biólogo e sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, um dos organizadores de Um diálogo latino-americano: bioética & documento de Aparecida, fala sobre o livro, sobre a atividade da Igreja Católica no campo da bioética e sobre a relação entre ciência e fé. Borba esteve em Curitiba na semana passada, convidado pelo Studium Theologicum para proferir uma palestra nas comemorações dos 75 anos da faculdade.

Qual é a proposta do livro, e por que usar o documento de Aparecida?

Nosso objetivo é fazer uma ponte entre ciência e religião usando a discussão sobre bioética e partindo do documento de Aparecida, que é o texto mais recente da Igreja Católica na América Latina. Em relação à bioética, o documento não chega a trazer grandes novidades: ele reafirma a posição católica de defesa da vida, dizendo "não" ao aborto e à eutanasia, mas é importante mostrar que não se trata de uma posição negativa. Os "nãos" são a consequência lógica de um "sim" maior, dado à vida, à beleza e ao amor.

Qual é sua avaliação sobre a ação da Igreja nos temas de bioética?

A Igreja no Brasil é muito ativa nos temas polêmicos, mas a mídia criou uma imagem muito reducionista da Igreja. A participação da CNBB em audiências no Legislativo ou no Judiciário aparece mais que as ações concretas em prol das pessoas. Quem lê jornal acaba pensando que a Igreja só sabe condenar as pessoas, mas no dia a dia a sua grande ação se dá nas experiências de acolhida. Esse tipo de atuação silenciosa, que é a mais extensa, fica perdida. Quando o Papa veio ao Brasil, ele disse que a questão do aborto, seja por que motivo for, sempre é uma questão de perda da esperança e da capacidade de ver a beleza da vida. Então, defender a vida significa ser capaz de retomar essa beleza e dar às pessoas uma esperança, um rumo. O Papa é muito mais propositivo que negativo.

Qual a legitimidade da religião – qualquer uma, não apenas a católica – para dizer o que se pode e o que não se pode fazer em termos de experimentos científicos?

Eu prefiro falar em legitimidade das ideias, seja quais forem. As ideias se definem pelo que têm de verdadeiro e adequado à realidade, e não por quem falou primeiro. Mas as ideias sobre bioética, de modo geral, padecem da noção de que a solução técnica resolve todos os problemas e de que o fato de termos a técnica para fazer algo tornaria esse algo permitido, lícito, bom ou recomendável. A técnica em si, por mais aprimorada que seja, não resolve os problemas. Ela tem de ser utilizada com sabedoria. O problema da ciência é que ela não é um conhecimento destinado a gerar sabedoria. A ciência pergunta como as coisas funcionam ou como podem ser modificadas ou utilizadas, mas não pergunta por que ou para que as coisas existem. Histori­­ca­mente, quem responde melhor esse tipo de pergunta são as religiões. Na encíclica Caritas in Veritate, Bento XVI diz que a ciência e a técnica não tem por finalidade responder as perguntas sobre o sentido da vida. Então, uma ética que nascesse pura e simplesmente da ciência seria totalmente vã. A ciência precisa dialogar com os campos do saber que se perguntam sobre o sentido: a Filosofia e a Teologia.

Um argumento muito usado é o de que a Igreja está tentando impor suas convicções a um Estado laico.

Por muitos anos, a Igreja usou sua influência política para conseguir coisas na sociedade, mas a própria Igreja abandonou essa prática; então, a crítica atinge um tipo de comportamento que não existe mais. Hoje se usa esse raciocínio para neutralizar a influência da Igreja no debate. Bento XVI é muito consciente sobre o papel da Igreja numa sociedade laica e plural – até mais que muitos defensores do Estado laico. A Igreja traz a mensagem de uma tradição de 20 séculos, na qual a sociedade ocidental cresceu e se desenvolveu. A civilização ocidental é filha dessa tradição, goste-se ou não, e essa tradição tem algo a dizer. As proposições da Igreja estão sujeitas ao debate racional no Estado democrático, mas o laicismo exacerbado dos nossos tempos nega a possibilidade do diálogo racional. Assim caímos na censura, na postura segundo a qual a Igreja não tem o direito de se pronunciar sobre certos assuntos, sem saber se o que ela tem a dizer é bom ou não.

Ano passado a encíclica Huma­­nae Vitae, de Paulo VI, que reafirmava a proibição à contracepção artificial, fez 40 anos. Na ocasião, um médico espanhol a classificou como "profética", em vista de estudos ligando tipos de câncer em mulheres ao uso da pílula. É possível fazer esse avaliação?

Se olharmos com olhos de hoje a pertinência dos postulados da Hu­­manae Vitae, vamos descobrir que praticamente todos eles, de alguma forma, se confirmaram. A maioria dos métodos artificiais de contracepção mostrou efeitos colaterais muito grandes e perigosos, enquanto o método natural evoluiu e se tornou cada vez mais eficiente. A população mundial está mais sedenta por soluções naturais – há uma desilusão com a solução técnica que se reflete na busca por todo tipo de terapias alternativas. E tivemos, particularmente, a epidemia de aids.

Quanto à aids, o Papa causou furor com uma declaração em sua viagem à África.

Ele disse que o preservativo não solucionará o problema da aids na África. E, se existe um lugar no mundo onde a camisinha realmente não é a solução, esse lugar é a África. Em geral, trata-se de sociedades muito machistas, em que a mulher é vista como propriedade do homem, que por sua vez tem o "direito" de satisfazer sua sexualidade onde e quando quiser, com quem quiser. Ele se contamina com facilidade e passa isso para a esposa. Distribuir preservativos até protege da aids um homem não contaminado, mas é quase uma carta branca para ele continuar a ter o mesmo comportamento promíscuo. Ainda que todos usassem preservativo, o problema da aids estaria resolvido, mas não se teria avançado um milímetro na promoção da mulher. Só que nem todos usam, então a doença se espalha e a mulher continua desvalorizada. A Igreja quer não só o fim da epidemia, mas o respeito à mulher e à família. Em Uganda, a epidemia começou a ser vencida com uma campanha que colocava a abstinência e a fidelidade em primeiro lugar. Não é à toa que o maior especialista em aids da Universidade de Harvard, Edward Green, veio em defesa do Papa dizendo que ele tinha razão.

Leia mais

A íntegra da entrevista está no blog Tubo de Ensaio, sobre ciência e religião. Clique aqui.

Um diálogo latino-americano: bioética & documento de Aparecida. Organizadores: Dalton Ramos, Francisco Borba, Francisco León, João Petrini. Difusão editora. R$ 39,90.

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