
Seu José já está acostumado a esperar na fila para o atendimento da Fundação de Assistência Social (FAS) na Rua Conselheiro Laurindo, em Curitiba. Conforme a noite cai, a quantidade de moradores de rua vai aumentando. Os principais motivos de estar na rua têm a ver com o alcoolismo e uso de drogas, problemas familiares e desemprego. Esse último, ocasionado pela falta de documentos. Na última pesquisa com população de rua, realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em 2008, o quesito falta de documentação é relevante. Só em Curitiba, mais de 50% dos entrevistados disseram não ter nenhum tipo de documentação.
Para que José Batista Pereira pudesse ser atendido, precisou recorrer ao 1.º Distrito Policial para abrir um boletim de ocorrência. Igual a ele, todos os dia em torno de dez homens e mulheres fazem o mesmo. Sem documentos, não é possível garantir um prato de comida e uma cama.
Para discutir essa e outras demandas do público, o Movimento Nacional de População de Rua (MNPR) tem buscado, em conjunto com o Ministério Público do Paraná, garantir os direitos constitucionais de cerca de 2.776 homens e mulheres que vivem na rua, conforme a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada em 2008. Dados da FAS, de 2009, apontam somente 1.165 pessoas. A entidade não se pronunciou oficialmente sobre a diferença nos números.
"Em Curitiba, não está havendo uma atuação do Poder Público", afirma o presidente do movimento, Leonildo José Monteiro Filho, ex-morador de rua desde 2006. Para ele, a falta de documentos e as dificuldades para fazê-los só demonstra a falta de identidade do próprio morador.
O promotor do Centro de Apoio Operacional das Promotorias (Caop) de Justiça dos Direitos Constitucionais, Alberto Vellozo Machado, diz que as discussões têm dado visibilidade aos problemas da população de rua. "Foi aberto um espaço que pretende trabalhar com o fortalecimento do movimento", diz ele. A concentração do público ainda é maior no Centro, mas existem algumas comunidades em bairros como Sítio Cercado, Pinheirinho, Água Verde, Juvevê, entre outros.
Histórias
Em uma hora na rua, a reportagem ouviu cinco histórias. Não ter mais família e o desemprego são apontados de forma recorrente como motivo para estar na rua. O José, citado no início da matéria, tem 57 anos e é viúvo. Já passou por cinco novos relacionamentos que não deram certo, segundo ele. Tem filhos, mas quer ter sua própria vida. Quando tinha uma casa, morava em Colombo, na região metropolitana de Curitiba. Hoje, cata latinha e vende para garantir a pouca renda. É chamado pelos colegas da fila do FAS de Salsicha, apelido que não gosta. Mas ri, com a certeza de quem um dia as coisas vão melhorar.
Maria Aparecida da Silva é viúva também e diz ter 33 anos. Os frequentadores do Terminal do Guadalupe não acreditam porque a senhora é uma das figuras emblemáticas e antigas do lugar. Com um cobertor na cabeça, um saco plástico no pescoço e rosto bonachão, Maria Aparecida é moradora de rua porque não quer voltar para casa. Avisa que alguém morreu onde morava e tem medo de retornar. No dia da entrevista, na última terça-feira, era seu aniversário. Seu presente foi um copo de leite quente oferecido por uma prostituta que faz ponto no local. Ela conta que durante o dia faz alguns bicos: ora na igreja, ora no sapateiro ali perto. Com isso garante os R$ 5,20 que gasta no almoço. À noite, vai para a FAS, onde recebe um prato de sopa e uma cama quente.
Mais adiante, João*, 50 anos, aborda a reportagem. Conta, orgulhoso, que já teve três carros mas que perdeu tudo pela traição da mulher. "Veio a depressão". Ele nem sempre dorme na FAS; prefere o que a rua lhe oferece.
Seu companheiro de calçada Mauro*, 45 anos, diz ter uma longa história a contar, mas assim como João não quer ser fotografado. O motivo: cumpriu pena por ter matado a mulher e os filhos, no Mato Grosso, há 13 anos. Antes, era motorista de carreta. Hoje, é guardador de carro. "Ninguém dá emprego para ex-presidiário." Ao perguntar-lhe o verdadeiro nome e a idade, ele sorri. Sob efeito da droga, Mauro avisa que o crack tem isso de bom. "Faz esquecer as histórias. Faz esquecer quem é você." Ele conta que é soropositivo, mas não teme a morte. "Minha família são os amigos da rua. O resto, bom, o resto é passado."
Assim como José, o rapaz bem vestido porém, com um furo no sapato que lhe causa incômodo está na rua por falta de documentos. "Não consigo emprego." Tem 37 anos e só cursou até a 3.ª série do ensino fundamental. Os pais moram em São Paulo. Ele olha a fila e lamenta. "Aqui é um inferno."
* nomes fictícios





