De olho em uma fatia do mercado bilionário que se projeta para o Brasil, uma rede formada por grandes players do setor e entidades pró-legalização têm pressionado parlamentares pela liberação do plantio da maconha (Cannabis sativa) ao mesmo tempo em que minimiza os malefícios da droga.
De acordo com um mapeamento recente publicado no anuário da Kaya Mind, que se apresenta como uma empresa especializada em dados e inteligência de mercado no segmento da Cannabis, o Brasil fechou 2022 com cerca de 101 associações ligadas ao setor, das quais 81 em plena atividade. A maioria se concentra nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Segundo o documento, o estado de São Paulo é disparado o campeão em solicitações de importação da substância ativa do produto respondendo por 37% da demanda nacional.
A estimativa da Kaya Mind é de que a maconha deve movimentar R$ 917,2 milhões no mercado brasileiro em 2024. Além de fornecer dados sobre o mercado, a Kaya Mind também atua como acelerador de empresas interessadas no segmento e apresenta um diagnóstico sobre a adequação do tema na sociedade e aponta caminhos para otimizar a pauta.
“Mesmo que a Marcha da Maconha seja majoritariamente frequentada por fumantes de maconha, por meio da pesquisa da Kaya Mind, notou-se que a prioridade de regulamentação ainda é o uso terapêutico: 71% acreditam que a regulamentação da pauta medicinal é mais urgente, enquanto apenas 22% acreditam que é o uso adulto. Os outros 7% pertencem ao cânhamo”, diz um trecho do anuário.
Financiada por cerca de 30 empresas ligadas ao mercado da maconha, a Kaya Mind também age como uma espécie de agência de notícias que alimenta o noticiário com pautas positivas sobre a maconha. Em seu site, a Kaya Mind destaca pautas publicadas pela Forbes, Valor Econômico, Estadão, Veja, UOL, BBC e G1.
Na mesma linha da Kaya Mind, a empresa de dados Prohibition Partners, ligada a diversos laboratórios europeus, também produziu um relatório em que prevê que o valor global do mercado de Cannabis chegue a 55,3 bilhões de dólares em 2024.
Segundo o estudo, a maior parte desta fatia deve ficar com a América do Norte e Canadá (35,17 bilhões de dólares), enquanto a América Latina deve responder por 824 milhões de dólares em 2024. Prevendo um crescimento exponencial, a sondagem da Prohibition Partners ainda aponta que até 2026 o segmento deve atingir um ganho global de 105 bilhões de dólares.
Sem eficácia comprovada para a maior parte das doenças
Recentemente, a pedido do deputado federal Zé Haroldo Cathedral (PSD-RR), a Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para debater “o uso medicinal do canabidiol (CDB)”. Com pouco espaço para o contraditório, deputados e ativistas reivindicam, principalmente, o avanço do projeto de lei que trata do plantio, mesmo com os riscos para a saúde e segurança pública e as poucas evidências científicas do uso terapêutico para a maior parte das doenças.
O evento também tratou da inclusão da substância na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e a sua distribuição pelo Sistema Único de Saúde (SUS), medida aceita pelos deputados de oposição, via importação, para os casos em que a ciência comprove algum indício de eficácia.
Praticamente isolado na audiência, o médico e deputado federal, Osmar Terra (MDB-RS), protestou contra a narrativa criada em torno na “maconha medicinal” e destacou os danos causados pela droga à vida de usuários e familiares.
“Essa história de dizer que a maconha é medicinal é a mesma coisa que dizer que tem cocaína medicinal, que tem ópio medicinal”, afirmou. "Está se discutindo a questão do canabidiol entre as quatrocentas e poucas moléculas que a maconha tem que pode ter algum efeito medicinal, mas os danos que ela causa são muito maiores do que os benefícios, se for usada a droga e não a molécula. A discussão que temos feito é de que se nós conseguirmos separar a molécula que faz efeito e a colocarmos em um medicamento e isso ser garantido pelo SUS, acho que é um grande avanço. Agora, dizer que óleo de maconha, fumar maconha é remédio, isso é um absurdo do ponto de vista científico. Tem 31 mil estudos no PubMed (plataforma de publicações científicas) falando sobre a Cannabis e mais de 70% desses estudos mostram danos, inclusive irreparáveis”, disse o deputado ao questionar o “interesse econômico de algumas pessoas” por trás da pressão para liberação da droga.
Osmar Terra citou casos de empresas que estão investindo em propaganda em jornais para disseminar a ideia da “maconha medicinal”. O Conselho Federal de Medicina (CFM) tentou impedir médicos de fazer publicidade desses produtos, pela falta de pesquisas conclusivas que comprovem essa divulgação. Após ser pressionado, no entanto, revogou a decisão e abriu uma consulta pública sobre o tema, cujo resultado ainda não foi divulgado.
“Não existe evidência científica disso. Acho que estamos discutindo uma coisa muito grave. O STF está para tomar uma decisão que não é só sobre a maconha, é sobre todas as drogas. Vai liberar o uso e o consumo. Como é que libera o uso e o consumo e não libera a venda? Quem é que vai comprar? Quem é que vai vender? É um paradoxo. Tudo isso é um movimento de confusão proposital que não leva em consideração o aumento de consumo que isso vai produzir Todo traficante vai virar usuário”, destacou o parlamentar.
A decisão do STF a que se referiu Osmar Terra deveria ocorrer no último dia 24 de maio, mas foi adiada para o dia 21 de junho.
“Nós representamos a população, não estamos aqui para fazer lobby de empresas de maconha”, concluiu o deputado ao lembrar do fracasso da legalização da droga no Uruguai, país que virou “paraíso” para traficantes depois da liberação e teve aumento recorde da violência.
Apesar dos esforços do deputado, a audiência foi dominada por argumentos favoráveis à maconha. As alegações dos ativistas não cessaram mesmo diante da afirmação feita pelo gerente de Medicamentos Específicos, notificados, fitoterápicos, dinamizados e gases medicinais (GMESP) da Anvisa, João Paulo Silvério Perfeito, de que a agência “não tem informações completas sobre a eficácia dos produtos” e, por isso, não os classifica como “medicamentos”.
Além de parlamentares e representantes do Ministério da Saúde, da Anvisa, do CFM e do Conselho Federal de Química, também estiveram presentes representantes de entidades ligadas a associações ou grupos internacionais reconhecidos pela prática do chamado “lobby do bem” ou “advocacy”, estratégia usada para influenciar agentes políticos na mudança ou criação de políticas públicas em favor de uma causa.
Participaram da reunião, a coordenadora-Geral do Instituto Mãesconhas, Angela Aboin; o integrante da Rede Coletiva de Psicólogos de PsicoCannabis, Lauro Pontes; o coordenador da Comissão de Orientação em Psicologia sobre tratamentos com Cannabis Terapêutica e Psicólogo da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME), Anderson Matos e; o representante da Associação Para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (Cannab), Leandro Stelitano.
As entidades são as mesmas que têm pressionado o Parlamento pela aprovação do Projeto de Lei (PL) 399/2015, que libera o plantio de maconha para fins medicinais, comerciais e industriais.
Além do uso medicinal e recreativo, a maconha também tem sido apresentada como opção de matéria-prima para utilização nos segmentos de cosméticos, construção civil, indústria de tecidos, agropecuária e alimentação.
O projeto no Congresso
Em abril de 2021, o relator do PL 399/2015, o deputado federal Luciano Ducci (PSB-PR), apresentou parecer favorável ao PL em comissão especial na Câmara dos Deputados. Rejeitado por deputados como Diego Garcia (PODE-PR) e Bia Kicis (PSL-DF), o novo texto, que substitui o PL anterior, foi criado pelo próprio relator.
Inicialmente, o PL 399/15 (de autoria do deputado Fábio Mitidieri - PSD/SE) tratava apenas da extração de substâncias da maconha para uso medicinal. O substitutivo apresentado por Ducci ampliou o texto, que passou a ser visto como uma brecha para o uso indiscriminado da droga.
As mudanças do texto fizeram com que deputados da bancada ruralista passassem a apoiar o projeto.
Como noticiado pela Gazeta do Povo, em setembro de 2020, o então presidente da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara, deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), disse ser contra a liberação das drogas, mas estava pensando a liberação do plantio como uma forma de o país obter lucro.
O cânhamo
Da mesma forma que o canabidiol é usado como “ponta de lança” para forçar a liberação da droga sob o pretexto do uso medicinal, o cânhamo (uma variedade da Cannabis sativa) tem sido usado como potencial matéria-prima para a produção de diversos produtos, que vão desde plásticos e roupas até alimentos.
De acordo com a aceleradora de empresas que atuam no mercado da maconha, The Green Hub, “em países onde existem usos legalizados, há empresas contabilizando lucros na casa dos milhões” com a produção de cânhamo.
Entre os empreendimentos da The Green Hub está o Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas da Cannabis (Ipsec), que monitora os projetos de leis em níveis municipais, estaduais, federais e internacionais “com a intenção de educar (a opinião pública) e pautar a cannabis”.
Pelo baixo teor do composto psicoativo tetrahidrocanabinol (THC), a planta tem sido apresentada como uma opção lucrativa para entrar no Brasil, inicialmente, na indústria têxtil. Além dos problemas atrelados à legalização da droga, a liberação de uma espécie da planta baseado no fato dela ter menor teor de THC implicaria em problemas de fiscalização, pois seria difícil avaliar o tipo de Cannabis de uma plantação.
Malefícios
Desde que as primeiras brechas começaram a ser abertas na Lei de Drogas, em 2006, com a distinção de usuário e traficante, teve início um intenso trabalho de propaganda positiva em torno da maconha.
Alguns mitos como a impossibilidade de viciar ou prejudicar a saúde mental e corporal do usuário acabaram ficando pelo caminho depois que estudos associaram o uso da substância ao desenvolvimento de transtornos mentais e sociais.
Por outro lado, apesar de já se ter um bom número de estudos documentando os efeitos nocivos da maconha, ainda persiste, mesmo com evidências fracas, a narrativa de que o uso medicinal do canabidiol (CBD) justificaria a liberação do plantio no Brasil.
Acontece que o CBD é uma das 400 substâncias químicas presentes na planta e mesmo elas sendo as mais famosas e defendidas pelos ativistas, não existem estudos provando sua eficácia no tratamento de doenças. Geralmente, se mostram resultados obtidos a partir do uso a curto prazo, mas pouco ou nada se fala sobre possíveis efeitos colaterais desencadeados a longo prazo.
Estudos famosos já reprovaram o uso da cannabis no tratamento de reabilitação da dependência de cocaína e crack; no tratamento de doenças ligadas ao sistema nervoso; bem como revelaram a falta de dados científicos que sustentem a eficácia da substância em comparação com outros medicamentos.
A falta de comprovação científica dos seus supostos benefícios fez, inclusive, com que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recuasse no posicionamento que orientava pela liberação do plantio para uso medicinal, em dezembro de 2019. Na época, a Agência aprovou outra resolução que estabelece regras para importação da substância, tratada como “produto” e não como “medicamento”, prevendo a venda com tarja preta ou amarela (pelos riscos à saúde apresentados). Atualmente, cerca de 20 produtos à base de CBD têm aprovação da Anvisa para importação.
Em 2018, ao publicar um relatório sobre “os efeitos sociais e de saúde do uso não medicinal de cannabis”, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que é ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), elencou inúmeros estudos em que a droga é associada a diversos tipos de transtornos, como psicose e esquizofrenia; doenças respiratórias, cardiovasculares e cânceres; além da relação com o aumento do risco de morte e lesão por acidente de trânsito e suicídio.
À revelia desses estudos, nos últimos anos tem se verificado uma forte atuação de farmacêuticas, clínicas psiquiátricas e escritórios de advocacia em favor da legalização do plantio da maconha, ainda que, inicialmente, para uso medicinal.
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