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Respeito à vida deve se sobrepor

O princípio da proteção à vida se sobrepõe às liberdades individuais em uma democracia. Nos casos em que a supressão de uma liberdade tem efeito comprovado e imediato para a saúde ou a segurança das pessoas, uma lei restritiva é mais facilmente justificável – mas não completamente. A lei seca e as leis antifumo se encaixam nessa situação, de acordo com o filósofo Ascí­sio dos Reis Pereira. "Quando existem pessoas dirigindo bêbadas é como uma roleta-russa, toda a sociedade está em risco permanente. A ameaça é contra a totalidade das pessoas, então é mais fácil você regular o comportamento de uma parcela", explica. Para ele, o mesmo acontece com as restrições ao tabaco, uma vez que a fumaça afeta a saúde de todos no ambiente.

Restrições deste gênero também levam em conta o direito das minorias. Na síntese de Pereira, em um cenário de legalização do fumo irrestrito e do álcool na direção, não-fumantes e abstêmios são uma espécie de minoria oprimida pelo comportamento das demais. "É o contrário do que acontece quando o Estado impõe normas a todos para atingir um pequeno grupo", compara. Isso não significa que as leis restritivas devam ser encaradas com naturalidade. "O liberalismo em que se baseia a nossa sociedade tinha uma confiança no progresso moral do homem. A sociedade deveria vir primeiro a considerar um comportamento imoral para então sedimentar isso em lei. Mas não somos homogêneos e por isso surge o conflito." (PC)

Lan house

Privacidade invadida pelo computador

A insegurança a respeito das informações fornecidas em cadastro não é algo exclusivo de especialistas da área. Não é difícil encontrar nas lan houses pessoas que façam uso do serviço apesar de sentirem sua privacidade invadida. Na maioria das vezes, elas não têm opção a não ser usar um computador público para suas atividades privadas. Poucas delas, no entanto, acham a causa injusta.

É o caso do pintor de automóveis Alisson de Oliveira, 28 anos, que ainda não conseguiu juntar o dinheiro para ter um computador em casa. "É complicado dar tantos dados para desconhecidos, você fica receoso de que isso caia na mão de terceiros. Mas fazemos o sacrifício já que é para pegar bandidos", pondera. A estudante Tchala Charneski, 20 anos, é mais incisiva. "É invasão de privacidade, porque muitas pessoas usam a lan house para ficarem anônimas e isso é um direito."

Para filósofos, juristas e outros profissionais que se dedicam a pensar as relações humanas, as sociedades ocidentais se sustentam na liberdade dos cidadãos. Só que, não raro, o direito de um in­­divíduo ameaça o de toda a sociedade. Nesse momento se instala o dilema: liberdade individual ou bem comum? As leis seca (que pune motoristas alcoolizados) e antifumo são tentativas evidentes de encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois valores. Mas outras normas restritivas, como o cadastro de usuários de lan houses e o projeto que prevê o mesmo para frequentadores de boates, nem sempre são vistas da mesma forma.

A Lei Estadual 16.241, em vi­­gor há um mês, obriga os proprietários de lan houses a manterem cadastro com o nome, o número de identidade, o endereço e o telefone de cada cliente – além de indicar o computador usado, o horário de início e término do uso e o IP (internet protocol, identificação da má­­quina na internet). O objetivo é facilitar a localização de pessoas que cometam crimes por meio da rede. Apesar de o texto proibir a divulgação dessas informações, os especialistas em segurança de dados Vinícius Ribeiro e Joel da Silva Filho consideram o cadastro um risco dificilmente justificável. Uma vez cruzada a lista com dados de softwares que rastreiam a navegação, liga-se cada site a cada pessoa. E isso pode ser usado de forma maliciosa, dizem os especialistas.

Para eles, quem não quiser correr o risco deixará de frequentar lan houses. "É difícil você regular com um texto uma atividade que não presta contas a ninguém, como é o caso do mercado de informações. Por isso a regra geral é, se não for extremamente necessário, não corra o risco", alerta Silva Filho, doutor em Sistemas Digitais pela Universidade de Manchester. Ribeiro, doutor em Ciências da Computação pela UFRGS, simplifica o problema em dois pontos: a confiança do usuário no proprietário da lan house e a garantia de que o banco de dados é seguro. "Vamos precisar de um cadastro das lan houses idôneas, então. Além disso, a lan house vive de fornecer acesso, não há motivo para seu dono investir na segurança dos dados", diz.

O mesmo raciocínio vale para o projeto que prevê o cadastro de clientes em casas noturnas com capacidade para mais de cem pessoas, em tramitação na Câmara Municipal de Curitiba. "Inverte-se a lógica do Direito. A pessoa que vai à lan house ou a uma boate, atividades legais como quaisquer outras, é tratada como suspeita de um possível crime", considera o especialista em Direito da Privacidade Danilo Doneda.

Dilema

Doneda vê esses casos como um sintoma do conflito entre privacidade e segurança – uma das versões contemporâneas do dilema liberdade individual ou bem comum –, que vem tendendo a favor da última. O delegado do Núcleo de Combate a Cibercrimes (Nuciber), da Polí­cia Civil, De­­métrius de Oli­veira, não tem dúvidas de qual lado deve prevalecer. "Quando você pensa no crime de pedofilia, é claro que vale a pena o sacrifício para pegarmos o criminoso. E é a única forma de pegarmos quem somente dissemina fotografias. Por outro lado, esses dados são todos públicos. Numa pesquisa na internet com seu nome, qualquer um descobre sua casa, seu emprego e até sua renda", pensa. O cadastro ainda não ajudou a polícia a solucionar algum crime.

O filósofo Ascísio dos Reis Pe­­rei­­ra, especialista em liberalismo clássico, é menos assertivo em dar uma solução ao impasse e reconhece sua complexidade. Ele explica que a sociedade se baseia na liberdade do indivíduo e que, portanto, o anonimato deveria ser a situação normal nas relações cotidianas – não se aplicando a lógica do "quem não deve não teme". "A pessoa tem a liberdade de escolher ‘não quero que saibam dos meus atos e preferências’. Porque eles podem criar embaraço, sem serem ilegais", observa.

Os indivíduos, no entanto, convivem por meio de um contrato social que delega ao Estado, entre outras coisas, a segurança. "Com a impotência do Estado em satisfazer essa demanda cria-se a situação propícia para mecanismos opressivos. É uma aberração devolver esse peso sobre os particulares numa área em que o Estado deveria atuar", analisa.

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Interatividade

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