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 | Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
| Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo

"Não, que é isso... Eu sou briguento", esquiva-se às gargalhadas o profissional de teatro Edson Bueno, 56 anos, ao receber da reportagem da Gazeta do Povo não uma pergunta, mas uma afirmação. Ei-la: em mais de 30 anos de carreira e a impressionante cifra de 77 peças, sendo 45 de sua autoria, ganhou tribuna de honra no panteão dos artistas amados dos curitibanos e dos confrades.

Assista ao vídeo com Edson Bueno

Confira os bastidores da entrevista

Diz-se a rodo que a gente daqui é econômica no afeto – os criadores são como o ouro provado no fogo. Experimente fazer um check list de expoentes da música, literatura e cinema para pelo menos desconfiar dessa verdade inconveniente. "Tem a Helena Kolody", deve estar pensando alguém.

No teatro, o petit comitê passa por nomes como Lala Schneider, Odelair Rodrigues e Mário Schoemberger, os três mortos. Inclui por tabela as encenadoras Fátima Ortiz e Regina Vogue. E Edson Bueno, por mais que ele negue. Incondicional ou não, o reconhecimento desse filho da Colônia Argelina – hoje Vila América, velho reduto popular do Bacacheri – é tão merecido quanto surpreendente.

Bueno foge a todos os estereótipos dos deuses do teatro. Não fala do seu ofício como uma panaceia. Aliás, não esconde, sonhava mesmo era fazer cinema. A paixão pela sétima arte é visível em seu apartamento no Centro de Curitiba. Entre uma dezena de troféus Gralha Azul, a estante é decorada com livros, cartazes e brinquedos que denunciam a fascinação pela telona. Chegou a ter 600 filmes em sua DVDteca.

Sincero, conta que fez uma dezena de peças ruins com o único intuito de poder pagar as contas no final do mês. E quem espera dele juras de amor à cidade onde nasceu, esqueça. "Não sinto saudade daqui quando viajo". Absolutamente curitibano nele, só a rinite.

Mas não o tomem por um iconoclasta prestes a soltar traques em quem passa. Boa praça, uns diriam que é o vizinho que gostaríamos de ter. Outros discordariam no ato: o sucesso de Edson tem o sabor dos mistérios que circulam Os Pássaros, seu filme favorito.

O diretor, ator e autor deu entrevista num intervalo da turnê nacional de Evangelho Segundo São Mateus, peça que integra o projeto Palco Giratório do Sesc. E o fez em companhia do cachorro Speechless que curiosamente também atende pelo nome de Spielberg.

PRIMEIRO ATO

Você dirigiria não atores, gente como nós três? [Rodolfo, Zé e Mazzo]Se continuarem à vontade do jeito que estão, dirijo. Ia mesmo ficar observando vocês [risos].

[Mazzo – Eu não quero ser ator. Sou fotógrafo.]

Os atores são vaidosos como falam?Exatamente como falam. É uma vaidade coletiva. E eu também tenho ciúmes, ué [risos]. Também sinto inveja dos outros. É preciso aprender a conviver com isso, aprender a perder, entender quando dancei, que apareceu alguém muito mais jovem e com uma ideia genial. Penso "putz, o meu tempo está passando" [risos].

Arrepende-se de ter ficado em Curitiba?Me arrependo. Eu me realizei artisticamente aqui, mas teria ganho mais dinheiro se tivesse ido embora. Digo isso pelo dinheiro. Só por isso.

Você diz que não é louco pela cidade...Dá até medo de falar, mas não tenho nem saudade quando estou longe [risos]. E olhe que sou daqui. Às vezes, a cidade me dá mau humor.

O ator Mário Schoemberger [1952-2008] fez sólida carreira em Curitiba, foi descoberto nacionalmente e morreu no auge. Essa história mexeu com sua percepção da carreira?Dividi casa com o Mário nas horas magras. Ele só fazia teatro, mesmo passando necessidade. Dizia: "Sou um palhaço". Maluco do Mário [silêncio]. Aconteceu de ele ir com 56 anos. Aconteceu. Meu sentimento é de que a gente passa. Detesto esse negócio de "ah, ninguém olha para o que fizemos no passado". Não me interessa o passado. Quem faz teatro sabe – é tudo ao vento.

Ainda é difícil fazer teatro na cidade?É uma parada. Nunca foi muito fácil para mim. Não sou um intelectual. Não faço marketing. Para ter um padrão mais ou menos de vida é preciso dirigir quatro espetáculos por ano.

Dizem que o público de Curitiba é difícil. Como você lida com isso?Com paciência. Aqui nunca se sabe se uma peça de vai ter bom público. Não é o nome do diretor ou do ator que determina. Agora, tem muita gente que gosta de ver um bom espetáculo. O festival [de Teatro] formou público e mudou a maneira de a gente encenar. Curitiba não via Gerald Thomas ou Antônio Abujamra...

... como esquecer o povo escandalizado saindo da Ópera de Arame no meio da montagem de O Casamento, do Abujamra, por exemplo...... foi genial... o personagem do padre com aquele... Bom, histórias como essa mudaram a nossa cabeça, que era muito formal. Que visão havia do nosso trabalho? A de que éramos um bando de amadores.

Você já fez peças que não queria?Já [suspiro]. Tem momentos da vida em que a gente diz – "agora eu preciso desse dinheiro." [risos] Não vou dizer quais foram as renegadas. Tem umas dez [risos]. Dei o meu melhor, mas o conteúdo era tão jaguara que nem querendo. Não fiz nenhum livro das 45 peças que escrevi. Não editei e não vou editar. E ninguém vai encontrar na minha gaveta um texto que nunca foi montado. Não sei escrever para não montar. Não tenho paciência para coisas que não vão dar em nada. É a minha personalidade.

Arte e loucura. Trinta anos depois, você ainda acredita que a maluquice é ingrediente para fazer arte?Eu acho que.... que tem de ser maluco sim [risos]. Os verdadeiros artistas são dionisíacos. Enxergam coisas. É como no longa Meia-noite em Paris, um filme do qual não gostei... Eu só vi cinco vezes. [risos]

É verdade que você não tem paciência para ver televisão?Não tenho mesmo...

Nem para O Astro [risos...]? Tá bom, né...Eu não assisto a novela. Mas O Astro eu vejo... vejo só a Regina Duarte, sem som. Não preciso saber o que a personagem fala. A Regina Duarte é genial...

Foram 77 espetáculos. De tudo, de qual experiência você vai sempre se lembrar?Eu queria fazer o The Spirit [quadrinho de Will Eisner]. Mas o Teatro Guaíra estava noutra. Desenhei o personagem gigante para convencer o doutor René Dotti, então secretário da Cultura. Acho que esse é o resumo da minha história – procuro mostrar o que é legal, mas nunca digo que o que faço é a salvação da humanidade. O meu teatro não é a coisa mais importante do mundo. Nem para mim.

Você diz que não é intelectual só para não ser confundido com os outros?Um dia, no Guaíra, um diretor disse: [empluma-se] "Isso que vocês viram é Artaud". Discordei, briguei. Meu trabalho às vezes é muito brejeiro.

Como trabalha com os atores?Não sou o Peter Brook, sou o Edson Bueno. No grupo Delírio todo mundo fala. A gente vai tomar café. Aquela menina que acabou de chegar se sente à vontade ao lado da Regina Bastos, que tem 40 anos de teatro. Minha técnica é deixar fazer.

De que cilada um diretor de teatro tem de fugir?Da perfeição. Dos pudores. Sei que as pessoas querem ser felizes. Digo que só tem um motivo para uma criação artística ter final triste. É uma razão didática: se você atravessar a rua sem olhar o carro vai te pegar. Páááá... Bem diz o Marshall Berman: só merece crédito uma obra de arte que ensine as galinhas a atravessarem a rua [risos].

SEGUNDO ATO

Seus pais.Meu pai era motorista de caminhão. A mãe era dona de casa. Os dois morreram quando eu tinha 18 anos, com uma diferença de 30 dias um do outro. Ela no dia 21 de novembro, ele no dia 21 de dezembro. Fiquei cuidando das minhas duas irmãs mais novas. Eu era um piá caseiro, mimado, tímido e me vi sozinho. Aprendi a cuidar da minha vida.

Quem levou Edson ao cinema...Minha mãe (Anna) era louca por cinema. Ela me contou ... E o Vento Levou inteirinho. Do jeito dela, mas contou. Uma história forte para mim é que quando ela estava muito doente ia passar A Ponte de Waterloo na tevê. Ela vivia me falando de um filme chamado "A Ponte de Vaterlô". Chamei-a para assistir. Pelas tantas, apaguei. Quando acordei, lá estava ela, doente, mas com o olho vidrado na tela.

Quem te descobriu?Eu tinha uma inteligência cênica por causa do cinema. Em 1981 ou 1982, cheguei a assistir 286 filmes. Virou um diferencial. Me destaquei escrevendo. Depois comecei a dirigir. Quando montei o Grupo Delírio [em 1984, com Sílvia Monteiro, Luiz Carlos Pazzello, Áldice Lopes, Carlos Simioni e a Maria Adélia] comecei a experimentar a atuação, devagarzinho, sem ambição.

Uma paixão alimenta a outra? A primeira peça que eu fiz se chamava Um Rato em Família. Era a história de um piá que se transformava em rato e começa a comer a mãe até ficar só a cabeça dela. Uma professora me disse: "Isso é cinema, não é teatro." No curso de Artes Cênicas eu dizia para o pessoal que vivia falando de Brecht que se eu fosse diretor de cinema ia fazer filme de monstro [risos].

Você se considera mais público de cinema do que de teatro?Devo ter visto uns 10 mil filmes na minha vida e devo ter saído de uns três ou quatro. E devo ter visto umas 600 peças e não saí de nenhuma. Mas me deu vontade de sair de umas 500. Não saí porque era minha profissão. No teatro tem o constrangimento. Tem uma pessoa ali. A relação com o público é frágil. Por isso a gente ouve tanto dizer: "Não vou mais ao teatro."

Um top três dos filmes favoritos...Fácil. O primeiro é Os Pássaros. É o filme mais importante da minha vida. Amarcord do Fellini, o segundo filme mais importante da minha vida. O terceiro é Os Caçadores da Arca Perdida, do Spielberg.

Os Pássaros...Quando eu estava no científico, uma professora de Filosofia resolveu me contar sobre um filme em que os pássaros atacavam as pessoas. Eu nem sabia quem era Hitchcock. Um sábado à noite fui assistir no Condor uma ficção científica bem ruim. Quando voltei para casa estava na última cena de Os Pássaros, em preto e branco, no Canal 6. "Cacete...." Liguei para o 6. Haveria reprise. Na sexta-feira eu estava sentado na frente da televisão e assisti a Os Pássaros. Foi mágico.

E o cinema dançou?Escrevi dois roteiros para cinema. Só dois. E ganhei dois Kikitos [Fim do Ciúme, de Luciano Coelho, e Paisagem de Meninos, de Fernando Severo]. Tenho um amigo que diz que para quem escreveu dois roteiros tenho Kikitos demais. Até penso em fazer um filme um dia.

De monstro?Não. Mudei muito. Se eu for fazer um filme será uma obra muito humana. Um cinema simples, de gente.

Veja o vídeo com dicas de filmes de terror dadas por Edson Bueno:

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