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 | Alexandre Mazzo
| Foto: Alexandre Mazzo

VÍDEO: Constantino Viaro fala do museu que criou junto com a família

FOTOS: Confira os bastidores da entrevista

As pessoas mais próximas ao advogado Constantino Viaro, 73 anos, têm uma frase para defini-lo: "Tudo acontece com ele". Dizem, lembrando "a última de Constantino", sobre quem as delícias do acaso recaem com a força dos raios. É célebre sua reação, há dois anos, ao saber que uma mulher declarou ter sido a modelo do quadro A Polaca, pintado por Guido Viaro, seu pai, na década de 1930. "É uma impostora", esbravejou. "Ele teria 112 anos. Se for ela, deve ter 100. Como é que pode?" Pois Hedwiges Mizerkowski vai muito bem obrigado, aos 102 anos, sempre braço dado com Constantino e sua mulher, Vânia – a primeira a rir das tiradas em série do marido.

A estirpe, a incorreção política e o humor pândego – agravado pela voz rascante – fizeram do filho único de Guido uma espécie de "reserva técnica" da cultura paranaense. Se ele está por perto, melhor. Foi assim nos anos em que atuou na Fundação Cultural de Curitiba e no Teatro Guaíra, ocasiões em que se envolveu em algum dos melhores capítulos da produção artística local. Tem o dedo de Constantino nas óperas populares levadas para o interior e na construção da Ópera de Arame – para início de conversa.

Resta a dúvida se foi essa a vida sonhada pelo piá criado entre tintas e telas. Sim – Constantino admite que queria seguir os passos de Guido. E que passou a vida em nome do pai. "Ele daria a vida por mim", resume, num dos raros momentos dessa entrevista em que perdeu a piada. Logo passa – ele tem mais uma para contar sobre o Nelson Cabeleira ou figuras assim.

Além do mais, não anda para lamúrias. Há pouco mais de um ano, fez a coisa certa: depois de uns tantos arranca-rabos com a prefeitura – a quem tinha cedido seu acervo em comodato – reformou um imóvel, na frente da Reitoria, e criou, do próprio bolso, o Museu Guido Viaro. Ali expõe 100 das 400 obras que tem consigo. E conta como parceiros do projeto os filhos – Guido Neto, escritor; e Túlio, cineasta. São todos por um no espaço já adotado pela cidade. Era de se esperar.

Você é o filho único do pintor Guido Viaro. Com perdão ao clichê, sentiu-se "à sombra de um mito"?

Pera lá, foi uma coisa muito engraçada [risos]. Eu fiz faculdade de Belas Artes e no finalzinho do curso teve um "Salão de Novos", como era costume. Foi em 1950, por aí. Mandei uma paisagem e ganhei o primeiro lugar. Estava todo alegre quando passaram duas mulheres atrás de mim e disseram: "Ai, é claro que foi o pai dele quem fez...". Sabe que nunca mais pintei?

O bullying começava já na hora da chamada? [risos]

Acho que no começo eu não me dava conta da importância do meu pai. Putz, mais tarde percebi que ele tinha dado aula pra meia Curitiba na época...

Quando eu tinha 5 anos, ganhei uma aquarela de colorir fotografia. Fiz um filme em papel celofane e com uma lanterna projetei numa caixa de papelão. Mostrei para a gurizada. Estudei no jardim de infância que era do Erasmo Piloto, na Comendador Araújo, e aprendi a fazer mil coisas. Mas não dei certo como pintor. [risos] Mais tarde, passei num concurso como advogado da prefeitura.

Guido era engraçado como você?

Era nostálgico. Falava muito da infância. Um dia o entendi. Na primeira vez que viajei para a Itália, em 1961, fui no navio Júlio César. Quando cheguei em Gênova, desceram mil pessoas, mas tinha umas 5 mil esperando pelos imigrantes que voltavam para visitar a família. Uma coisa maluca. Na multidão, escutei alguém gritando "Viaro, Viaro". Eram os irmãos do meu pai. Virou um acontecimento.

Incomoda ser sempre relacionado a ele?

Pelo contrário. Vocês não imaginam a quantidade de pessoas que me contam histórias simpáticas sobre o Guido Viaro. É um grande prazer. Era uma pessoa maravilhosa. Se preciso, matava por mim.

Conte uma...

Ele tinha uma dificuldade para conseguir material para o Centro Juvenil de Artes Plásticas. Um dia, foi à Secretaria de Educação e deixou um bilhete para um conhecido que trabalhava lá: "Seu cachorrão. Arranje tinta e papel pras minhas crianças". [risos]

Ele chegou a receber uma portaria de que deveria entregar a sala que usava nas Belas Artes. Virou o papel e escreveu nas costas: "Seu filho da p***. Venha me tirar a sala aqui que eu te quebro a cara". Com data e assinatura. Ficou por isso mesmo. [risos]

Como vivia o artista Guido Viaro?

De maneira modesta. Se hoje um artista tem dificuldade de sobreviver, imagine numa Curitiba com 100 mil habitantes. Ele dava aulas o dia inteiro. Os modelos tinham de ser os da casa. Isso quando não desenhava em prova velha de aluno.

Era fama sem rendimentos...

Vejam como as coisas são. Fui fazer uma pós-graduação na Itália e ele ficou nervosíssimo, porque minha bolsa de estudos era pequena. Sabe o que fez? Vendeu por US$ 500, para um professor americano, um quadro premiado em que retratou os bêbados do Passeio Público. Anos atrás, esse comprador soube do museu que estava na prefeitura e me mandou o quadro de presente. "Putcha", barbaridade: a tela ficou para a Fundação Cultural. Fiquei com tanta raiva que ameacei chamar a polícia. [risos]

Como foi o Guido dos últimos anos?

No final, morava na nossa casa da Sete de Setembro [com a Rápida, onde hoje funciona a Confeitaria Hamburguesa]. Lembro que quando ele chegou aos 70 anos eu o encontrei na Emiliano Perneta, saindo das Belas Artes, com lágrimas nos olhos. Foi uma das poucas vezes que o vi assim. Disse para mim: "Me obrigaram a aposentar. Eu ainda podia trabalhar tantos anos..." Morreu três anos depois, ainda esperando os alunos.

Minha mãe, Iolanda, morreu um ano antes, em 1970. Tinha um programa, a Praça da Alegria, com o Carlos Alberto da Nóbrega. Ele ia fazer uma gravação aqui em Curitiba e anunciou que entrevistaria meu pai. Ela ouviu aquilo e avisou que se fosse ele, não ia. Disse isso e caiu morta. Impressionante. Claro que o pai não foi. [risos]

Depois da morte dela, ele perdeu a vontade de viver. Foi morrendo devagarinho.

Sua família era próxima de Miguel Bakun. O suicídio dele continua sendo uma história obscura da vida local...

O Sylvio Back fez um filme sobre ele [Autorretrato de Bakun]. Convenceram o Sylvio de que o Bakun era um milionário excêntrico, porque ele tinha uma Mercedes Benz. Coisa nenhuma. Era uma sucata. Conheci o Bakun desde criança, um cara que vivia na penúria. Tanto que se suicidou num local menor que ele. Num galinheiro, putz...

Uma vez, eu estava com meu pai e encontramos o Bakun. Ele disse assim: "Viaro, aconteceu um troço... A dona Hermínia Lupion pediu que eu levasse uns trabalhos para ela comprar. Aluguei uma carrocinha e levei lá. Passou um mês e nada. Fui lá. Ela disse não ter gostado de nada, exceto de uma moldura, que resolveu comprar. Vendi para poder traçar a carrocinha de volta". Vocês veem como é?

Nas rodas de conversa você adora falar dos tempos em que atuou como jornalista. Foi a melhor fase da vida?

Comecei com 15 anos, fazendo uma revista da Rede Ferroviária. Trabalhei também como correspondente de O Correio da Manhã. Mas foi O Estado do Paraná a maior escola que tive na vida. Vivi o jornalismo boêmio. Era bacana, uma bebedeira geral. [risos] Tinha o Percival, que era médico, mas trabalhava no jornal e bebia que nem... A gente gostava de ir no Caneco de Sangue e no Bar do Turco, na Barão do Rio Branco. Era barra pesada. Um dia, numa brincadeira, o Percival deu um tiro de raspão nas costas do Turco. Hoje seria um escândalo, né? Pois ele botou o cara no carro, levou no hospital, costurou e voltaram para encher a cara. [risos]

Você trabalhou com o Fernando Pessoa Ferreira, autor de "Curitiba, a fria..."

Ele trabalhava no jornal e uma vez escreveu de favor uma "coluna sentimental" para um jornalista da casa, que usava nome feminino e tal. Recebeu uma carta que dizia assim: "Madame não sei o que tenho. Estou com 15 anos e peso 130 quilos. Me oriente?" Ferreira respondeu: "Minha querida, você sofre de uma elefantíase aguda. Pense num suicídio". Não vi mais o Ferreira lá. Ele saiu quase fugido daqui.

E o desejo de infância de ser cineasta?

Na década de 1960, fiz cerca de 300 cinejornais – aqueles que passavam antes do filme. Ia bem – mas fui para Itália e meus sócios fizeram uma sacanagem: quando voltei, tinham vendido a empresa. Meu pai, na boa fé, assinou a papelada. Voltei para a cultura só na década de 1970, quando o Jaime Lerner me pediu para organizar a Fundação Cultural de Curitiba.

Podemos dizer que foi à frente do Teatro Guaíra que você encontrou sua voz?

Fiquei sete anos lá. Lidava com gente inteligente. O ator luta como um leão. O Guaíra me deixava entusiasmado. Nas viagens ao interior, via 2 mil pessoas assistindo às óperas que montávamos em ônibus. Era como circo, mas era A Flauta Mágica, de Mozart. Uma vez, vi uma criança perguntar "Mas o que é isso, que é tão bonito?" A mãe não sabia explicar e falou: "É que nem televisão, só que ao vivo". Entende por que é triste ver um projeto desmontado?

E quanto ao Dalton? Você botou a obra dele no palco...

O Dalton tinha medo de dar o texto. Liguei para um senhor diretor, o Adhemar Guerra, em São Paulo, e o trouxe para cá. Montamos Mistérios de Curitiba e O Vampiro e a Polaquinha, que ficou sete anos em cartaz. Depois montamos o teatro Novelas Curitibanas, que era para ser A Casa do Vampiro, mas o Dalton não quis que se chamasse assim. Acreditam que o Adhemar teve um treco no dia da inauguração? Morreu depois, mas quase...[risos]

Há um ano você decidiu abrir por conta o Museu Guido Viaro. Ficou mágoa do poder público?

O museu funcionou 20 anos na Rua 13 de Maio. Sumiu desenho e até quadro. E ainda chovia dentro. Ia deixar apodrecer? Resolvi cancelar o comodato. O acervo ficou outros 10 anos na minha casa. Cheguei a receber duas propostas para vendê-lo. Uma veio de industriais do Norte da Itália. Outra de um colecionador de Nova York – riquíssimo. Eu podia ganhar um bom dinheiro, né? Mas não vou viver do trabalho do meu pai. Conversei com meus filhos e resolvemos: o acervo fica aqui e acabou. Estamos sustentando o museu.

Quanto você investiu no museu?

Não sei, talvez R$ 200 mil. Custou caro, porém mais barato do que se o Estado fizesse.

É importante que haja museus particulares. Afinal, o poder público tem uma dificuldade imensa de administrar com longevidade espaços como esse. É preciso competência, não entregar a cultura para quem apoiou campanha.

O Museu Guido Viaro virou um espaço da "Curitiba descolada". Você esperava por isso?

Está indo bem de fato. O Guido, meu filho, está desenvolvendo um trabalho com jovens compositores. Tem apresentações aqui quase toda noite. Temos também o Cine Clube Espoleta. Recebemos crianças das escolas públicas. Me lembra o Centro Juvenil de Artes Plásticas.

Ah, o Dalton vai trazer alguns exemplares de todos os livros que ele escreveu e nós vamos ter aqui uma Sala Dalton Trevisan, para quem quiser consultar...

Será que ele nos dá uma entrevista?

[risos] Ele está inteirão ainda, né. Vem muito aqui. De vez em quando a gente toma café e às vezes almoça no Bar do Vitor. O Dalton gosta dessas coisas...

Terminou? Acho que não falei nada de engraçado. [risos]

Série Entrevistas | 2:56

Constantino Viaro, filho do pintor Guido Viaro, fala sobre o museu criado para abrigar as obras do pai e das tentativas de compra, por grupos estrangeiros, de seu acervo.

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