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Jovens prostituídos e drogados varam as madrugadas como zumbis numa das cidades portuárias do Brasil | Jonathan Campos
Jovens prostituídos e drogados varam as madrugadas como zumbis numa das cidades portuárias do Brasil| Foto: Jonathan Campos

A luz vacilante não revela por in­­teiro o corpo miúdo afogado na escuridão da soleira da loja de colchões. Noite alta, a iluminação da rua mal alcança a menina que encobre o clarão do crack. O intruso causa surpresa, e suspeitas. Você faz programa? "Sim", diz em resmungo. Quanto é? "Dez reais, mais 10 do hotel." Aqui tem 10, posso sentar para conversar? A mão pega a nota, o olhar desconfiado, de soslaio, não diz nem que sim nem que não. Estou fazendo uma pesquisa. Ela suspende a cabeça, o olhar parece dizer "que saco, outra vez". É uma reportagem. Ela dá a indiferença como resposta. Só uma conversa, tudo bem?

Que tipo de homem paga para ouvir histórias? "Como é que tu vai escrever isso?", diz, olho no papel. Sem nomes. "Ele vai ler?", pergunta desconfiada. Não se preocupe, ele não vai ler. Um tipo como esse não tem tempo para leituras. "Mas se tu dizer onde eu tô, eles vêm atrás de mim", adverte acostumada à prudência necessária para quem vive nas ruas. Embora indefinidos nas orações, dá para supor quem sejam os sujeitos "ele" e "eles". Ela tem seus motivos para preferir o isolamento.

"Aí, maninha, o que é que tá pe­­gando?" A inquisição parte de três molambentos que se aproximam. "O J* tá na área", adianta-se um deles. "Ele já pagou", ela informa com olhar vago e impreciso. "Nóis tá ali", indica o primeiro. O clima pesado vai junto com os mal-encarados. Há quanto tempo na rua e como aconteceu, o jornalista pergunta, olho nos três instalados no outro lado da avenida. Ela vai até o passado não muito distante buscar alguma coisa a que se pudesse apegar. Permanece em silêncio, a convocar lembranças. Os olhos, agora duros e frios, fitam alguém que lhe surge à mente.

Nesse ponto a conversa sai das formalidades, entra no campo árido da realidade, sem o enfeite dos eufemismos. É o momento do contato com a crueza da existência, da vida sem disfarce, de todas as possibilidades perdidas, das palavras simples que alcançam a alma porque dizem a verdade. A menina fala de como a vida pode ser ingrata quando se nasce mal, filha de pai errado e de mãe desatenta. As recordações preenchem o vazio dos olhos, in­­chados de lágrimas e do ódio que vaza do castanho escuro.

Ela tem uma maneira despretensiosa de falar do futuro, como se ele não existisse. É um bocado sofrida, apesar da idade. Tem 18 anos, morena clara, magra, desnutrida. Co­­­meçou a vida sexual aos 10, estuprada pelo pai. Aguentou três anos, fugiu. Morou nas ruas e vive num cortiço com duas prostitutas. Faz de dois a três programas por dia, a 10 reais. Tem cliente que pechincha. "É melhor cinco que nada." Muitos preferem o carro, para economizar os 10 reais do hotel. A maioria é coroa, que paga direitinho porque gosta de menina nova. Foi com um desses o ingresso oficial na prostituição.

As palavras despem a vida do manto de fantasias. Como é possível sonhar com uma realidade dessas? A prostituição serve mais para o crack do que para a comida. O estômago reivindica algo e o chocolate que o entrevistador leva à mão é tentação por demais grande. Come-o de um só golpe. Vez ou outra parece embriagada de sono, entra numa espécie de torpor em que, confundindo-se as sensações recentes com as recordações passadas, tem a impressão de viver uma dupla personalidade: aquela que queria ter sido, professora, e aquela em que se tornou, prostituta juvenil. Professora, ela? Nem concluiu o primário.

Pausa para outra pedra; já são 20 minutos de uma conversa entrecortada por sonolência e alucinações. A rapidez é necessária. J*, o "namorado", está por chegar e pode não compreender uma conversa na rua em vez de um programa no hotel. A figura do cafetão ainda existe, mesmo que com outro nome, e foi ele quem a tirou de algumas enrascadas. Por isso a dívida de gratidão. Seria violento? Há feridas nas pernas e braços. "Ai, que saco. Chega de pergunta". A mente atormentada não consegue administrar tantas reflexões e juízos. De repente, parece que tudo se tinha evaporado.

Tenta recolher fragmentos de emoções, mas elas escapam tão logo aparecem ou então se manifestam em torvelinho e ela não sabe como capturá-las, nem por onde começar. Se estivesse lúcida, teria talvez desejado confiar a alguém suas reflexões, como é comum às adolescentes, mas não foi o caso nas vezes em que ofereceram ajuda "especializada" e nem seria a um estranho qualquer que chega alto da noite com uma nota de 10. Sua história, sua vida, enfim, por mais perdida que pareça, vale mais do que 10 reais ou uns cursinhos meia-boca em alguma ONG que leva algum do governo.

De repente, um grande cansaço a invade, um desânimo avassalador diante do fracasso da tentativa de ajustar as ideias. O olhar se perde, preenchido pelo vazio. Teria saudades de alguém? Vontade de chorar, de desaparecer, de se matar? Já tentara isso uma vez. E se ela se matasse, alguém se importaria?

A conversa acaba. Eis os 10 do hotel. Mão estendida, ela esboça um sorriso, uma alegria fictícia de condenada. O nome não importa, não faz diferença. De longe, na escuridão, iluminada pelo clarão do crack, ela suscita umas quantas dúvidas. O que será dela? Ficará ainda muito tempo nas ruas? Conseguirá ser professora? Casará um dia? Terá filhos? Até quando viverá? Tantas dúvidas reforçam a hipótese de que só algo extraordinário será capaz de mudar-lhe o destino certo.

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