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Até agora, o papa não deu chacoalhão em ninguém. Nem exibiu saber teológico para além da conta. Não foi nem tanto João Paulo II, nem tanto Bento XVI, mas uma espécie de "padre Francisco" em viagem de missões, fazendo o que o clero costuma realizar nessas ocasiões – rezar em roda, animar a comunidade, visitar a casa de um e de outro. Aproximar. Cá entre nós, estava para nascer um pontífice para ficar tão à vontade ao lado de líderes de outras religiões.

A "Hora do Ângelus", ontem, no Balcão do Ar­cebispado do Rio de Janeiro, é a maior prova de que sua santidade atravessou o oceano até aqui trajando vestes de pastor, com o charme de carregar ele mesmo a própria valise. A invocação do anúncio do anjo a Nossa Senhora é uma tradição da piedade católica. Em tempos idos, era tão habitual quanto a reza do terço ou as Vias-Sacras das sextas-feiras. Mas perdeu a audiência, sendo cultivada mais por legionárias e demais grupos marianos, cujas origens remontam a era pré-Vaticano II; e por turistas em passagem por Roma.

Basta pensar na variedade de artistas que pintaram a "Anunciação", de Fra Angélico a El Greco rumo ao infinito. Tema erudito? Não, popularíssimo. Quem se arvorar por alguma cidade do interior de Minas Gerais ou do Nordeste ainda há de se surpreender com a reza do Ângelus transmitida da torre da matriz, às seis da tarde, pondo o povo a recitar a "Ave Maria". Mas no geral, o costume se tornou quase que um resquício arqueológico, apesar de sua importância teológica. A Encarnação realiza a palavra dos profetas e dá corpo ao plano da salvação. É o que o responsório lembra.

De volta ao Palácio São Joaquim, onde Francisco rezou o "o Anjo do Senhor anunciou a Maria...", a cerimônia foi o bastante para dizer que o santo padre "bota fé" na religiosidade popular. Demonstrou isso desde o primeiro momento, ao ser eleito, puxando um "Pai Nosso", do mesmo modo que as famílias fazem à mesa, nem que seja por ocasião do Natal. Rezar juntos tem um quê de "deixa disso" e oferece uma enorme eficácia em momentos de tensão. Captou?

Cada vez que Francisco se rende ao catolicismo popular é como se invocasse um momento saboroso, pacificador e consensual que teimamos ignorar. É como se disse que apesar das diferenças que fazem tremer a cúpula de São Pedro, há algo em comum, que aquece e irmana. No momento, recuperar esses rituais vale mais do que promover lavação de roupa suja ou promoções do baixo astral.

Não chega a ser um projeto de pontificado, é claro, mas não restam dúvidas de que o papa está invocando memórias que estão na entranhas do Brasil. Bom começo. É cedo para dizer, mas a "Hora do Ângelus" deve voltar aos expedientes paroquiais – até porque já se sabe que a devoção mariana ainda é a maior trunfo da Igreja Católica frente o crescimento dos evangélicos.

Mas essa é outra história, ainda não entrou em pauta, porque para felicidade geral da nação o papa Francisco, como se disse, veio rezar com seus pares e não promover proselitismo. O retorno dos católicos afastados está nas entrelinhas, mas o espírito das coisas está mais para a afirmação de uma Igreja que saia do comodismo, dialogue e "se coce". O papa não faz discurso do método a respeito, mas dá pistas, a rodo.

Já citou, por exemplo, uma meia dúzia de vezes o Documento de Aparecida, que ajudou a redigir em 2007. O texto deve ser mais invocado daqui em diante do que o Documento de Puebla, de 1979, quando a opção preferencial pelos pobres e pelos jovens virou um projeto de Igreja na América Latina. Os dois textos não são a água e o vinho, mas o segundo ganhou o mundo em tempos bem mais cinzentos. É realista. Põe sem meias palavras o nariz dos fieis para fora da capela, mostrando que devem ganhar as ruas novamente. Os observadores já anunciam que o Documento de Aparecida é a constituição de Francisco. Eis o saldo da visita do viajante argentino.

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