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Marta Morais da Costa é professora sênior do programa de Estudos Literários da Universidade Federal do Paraná | Antônio Costa/ Gazeta do Povo
Marta Morais da Costa é professora sênior do programa de Estudos Literários da Universidade Federal do Paraná| Foto: Antônio Costa/ Gazeta do Povo

Ernest Hemingway escreveu entre 1957 e 1960 as memórias de sua vida em Paris no auge da década de 1920, quando a Europa vivia a denominada "belle époque" [bela época] e a cidade era conhecida no mundo todo como "Cidade Luz". O livro intitula-se Paris é uma festa e mistura a realidade cotidiana a relatos da convivência com intelectuais do porte de James Joyce, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein e Ezra Pound, autoexilados na capital artística do mundo Ocidental.

A comparação entre essas crônicas, Paris e a leitura é conduzida aqui pela palavra e o conceito de festa. Festa tem a ver com feriado, descanso, divertimento, alegria e comemoração. Ora, direis, em que a leitura pode conviver com esses significados? Conhecendo os índices indigentes de quantidade e qualidade de leitura no Brasil (apenas 50% dos brasileiros leem), como associar essas informações – quase sempre negativas, desestimulantes, ameaçadoras – com a noção de festa? Como associar divertimento quando os não leitores consideram ler uma ação chata, trabalhosa e sem sentido?

Ousadamente, tento uma resposta: somos, em questão de leitura, homens e mulheres de pouca fé. Não acreditamos em milagres. Preferimos acreditar em bruxas, porque las hay, por supuesto, em todas as frestas e rachaduras da cultura brasileira, de pouca leitura, ou de leitura mal direcionada, e até mesmo, desorientada. Os índices da leitura rarefeita apontam para perspectivas pessimistas, oráculos terríveis e assustadores, previsões de catástrofes no conhecimento, no desempenho profissional, nas relações humanas, no progresso do país. Nada disso é inverdade. Nada disso é excesso de pessimismo. No entanto, tudo isso tangencia uma espécie de salvo conduto, de luz ao fim de um tenebroso túnel que é a relação entre o leitor, o texto e o momento da descoberta. Essa relação é sempre uma festa.

Imaginemos uma cena de leitura. Diante dos olhos de um leitor o seguinte texto:

"Quando eu era pequeno, habitava uma casa antiga, e diziam as lendas que ali fora enterrado um tesouro. Ninguém, é claro, o conseguira descobrir, nem talvez mesmo o procurou. Mas ele encantava a casa toda. Minha casa escondia um tesouro no fundo do coração..."

Diante da menção à infância ("quando eu era pequeno"), o leitor pode escolher alguns caminhos da memória e da afetividade. O leitor quando foi pequeno, seu filho pequeno, as crianças da vizinhança: qualquer que seja a imagem invocada pela palavra pequeno, ela trará em sua companhia algum tipo de afeto: memória, inocência, olhar que tenta aprender o mundo, brincadeiras, movimento, risos. Além disso, a imagem da infância encontra um outro tempo: "uma casa antiga". São tempos longínquos, são mistérios de outras vidas, aos quais as lendas vêm acrescentar sonhos de riqueza: um tesouro enterrado. O que a criança sonhou no passado continua em alguns adultos até hoje como desejo: encontrar tesouros, seja em loterias, seja num golpe de sorte, seja nos baús de casamentos, seja na promoção do trabalho. Os tesouros acenam aos seres humanos como recompensa da descoberta. Em duas curtas linhas vemos o leitor mergulhado em si mesmo, para além do fato narrado. Um mergulho que deixa na superfície as preocupações e angústias do cotidiano para seguir as pistas do personagem em seu encontro com o leitor.

A leitura, sobretudo da ficção, tem a capacidade de oferecer uma ilha ilusória para o descanso do negócio, para viver as amplidões do ócio. Junto com o personagem descobrimos que o tesouro mais valioso é o que mora no fundo do coração, não apenas no sentido de valores sentimentais, mas, sobretudo, no de valores psicológicos e existenciais. O tesouro do coração está na memória que recupera o encanto da casa e o encanto da infância com seus sonhos.

Temos, aí, numa exemplificação rápida, a partir de um fragmento de O pequeno príncipe, de Saint Exupéry, a festa da leitura que se dá quando na relação leitor-texto-sentido, quem lê não descobre apenas palavras: descobre a si mesmo.

Uma descoberta é sempre um momento de festa. Como se sentiram os cientistas ao longo da história ao descobrirem a existência da gravidade, ao criar a teoria da relatividade, ao concretizarem o bóson de Higgs? Em julho deste ano, o diretor geral do CERN [Centro Europeu de Pesquisa Nuclear] comemorava com orgulho e felicidade a criação da partícula subatômica do bóson. E o próprio Higgs se incluiu nesse momento de júbilo, afirmando: "Nunca pensei que assistiria a algo assim em vida e vou pedir a minha família que coloque o champanhe na geladeira." Esse é um exemplo da alegria do descobridor de tesouros reais, dos tesouros científicos, mas que nada ficam a dever aos da afetividade ou da memória. Porque são os seres humanos reais que completam e significam continuamente, por meio da leitura, os textos que circulam na cultura. Qualquer texto sem ao menos um leitor que lhe dê vida, não passa de borrões no papel, de bits aleatórios, de linhas e formas indecifradas. Não existem efetivamente. Mas é suficiente o olhar e a mente de um leitor para que ganhem existência.

Quando um griot, um contador africano de histórias, reúne dezenas de pessoas à sua volta para ouvir uma boa narrativa, pessoas que abandonam por momentos o trabalho cotidiano, rotineiro e cansativo. E a voz desse contador desloca os ouvintes para a descoberta de um outro plano de entendimento da vida e de seus conflitos. Vive-se ali um momento de festa.

Se pensarmos no prazer e contentamento que sentimos quando, numa roda de amigos fraternos, contamos uns aos outros histórias de nossa vida, da vida de outras pessoas, do que desejamos e prometemos cumprir, reina a comunhão de sentimentos. A vontade é de que a reunião não termine. E rimos e repetimos e corrigimos e acrescentamos e criamos uma rede de conversas que nos expressam a todos: estes são momentos de festa.

A leitura dos textos escritos tem o mesmo dom de griots e seres conversantes. Ela nos permite acessar o que se conta de vidas alheias, de lugares que – quem sabe? – nunca veremos, de sentimentos que nunca provamos, de desejos interiores que desconhecíamos. E vamos lendo, envolvidos, e sentindo que o relógio deixou de existir, que nos importa apenas aquela conversa que se dá entre os escritos e nosso pensamento. Este é um momento de festa interior, de posse em paz, de júbilo.

A festa da leitura consagra também o con(graça)mento. Ao longo dos dez anos em que coordenei um pequeno grupo de leitores adultos na experiência com a literatura, ganhei amigos, ganhamos a alegria de nos rever a cada semana com um novo livro, ganhamos a convivência de ideias e sensibilidades diferentes. Em cada encontro experimentávamos a troca do diálogo silencioso com a leitura solitária do livro pela leitura compartilhada do mesmo texto. E era um mar de descobertas. Simultaneamente descobríamos outros sentidos para o texto e descobríamos outras faces de cada um dos amigos. Celebrávamos em conjunto e permanentemente a festa de crescermos nas habilidades leitoras e de igualmente crescermos nas marcas humanas de nossas vidas.

Por isso, se você lê com a má vontade dos estudantes que se preparam para uma prova sobre o livro lido; se você pensa que a leitura é apenas tarefa de escola; se você acredita que ler é apenas encontrar informações; se você supõe que festa é sair de casa e abandonar os livros, aceite um convite incomum: leia para descobrir(se) e, se puder, convide os amigos para compartilhar textos. Com direito a doces e salgadinhos, cerveja e champanha, sorrisos e promessas de laços afetivos eternos. Vale a pena, porque a leitura só é triste quando a alma é pequena.

* Marta Morais da Costa é professora sênior do programa de Estudos Literários da Universidade Federal do Paraná. Pesquisa leitura e teatro paranaense. É autora de Sempreviva, a leitura e de O mapa do mundo, crônicas sobre leitura, entre outras obras.

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