
O nascimento de crianças com problemas de saúde também gera polêmica em Portugal e em outros países da Europa. Mas, enquanto no Brasil o que se discute é a possibilidade do aborto nos casos em que o feto tem anencefalia (não tem cérebro), lá o debate gira em torno da indenização para situações em que, por falha no pré-natal, não foi diagnosticada, durante a gestação, deficiência grave do bebê. O jurista Paulo Mota Pinto, da Universidade de Coimbra e ex-membro do Tribunal Constitucional português, que esteve em Curitiba na semana passada, defende o pagamento por danos patrimoniais e morais. Ele considera justificável também a indenização por falha do método contraceptivo, com a ressalva de que a indenização seja apenas por danos patrimoniais se a criança não apresentar problemas de saúde. Acompanhe os principais trechos da entrevista concedida à Gazeta do Povo:
Existe uma discussão no Supremo Tribunal Federal do Brasil sobre a legalidade do aborto de fetos anencéfalos. Como funciona isso em Portugal?
Em 1985, deixou de ser crime o aborto quando existe uma deficiência grave do feto, o que inclui anencéfalos. Posteriormente, o que se discutiu em Portugal é se o aborto, independentemente de indicação médica, mas por livre vontade da mãe, deveria ser aceito até a 10ª semana da gestação. Tivemos dois referendos sobre o assunto. Em 98, houve um referendo em que a questão foi posta ao povo e o resultado foi pelo não, ou seja, manter a criminalização. Oito anos depois, em 2006, voltou a haver um referendo, por causa da baixa participação. Desta vez, o resultado foi pela descriminalização do aborto. Nas duas vezes, porém, não houve a participação mínima de 50% da população. Baseado nesse resultado, o parlamento de Portugal fez uma lei que descriminalizou o aborto. Portanto, hoje em Portugal, até a 10ª semana de gestação, o aborto não é considerado crime. E quando há uma deficiência grave do feto, como no caso do anencefálico, pode ser feito o aborto até as 16 semanas de gestação. As discussões ainda continuam, mas essas são as regras vigentes hoje em Portugal.
E em torno do que as discussões se concentram hoje?
Hoje, não só em Portugal, mas também em outros países da Europa e também nos Estados Unidos, surgiram casos de jurisprudência em que, por falhas do método contraceptivo, na esterilização ou no pré-natal, não se identificou uma deficiência, e os pais acabam pedindo uma indenização por causa dos gastos extras que terão. Parece um pouco contraditório. Parece que os pais evocaram um direito do filho de não nascer. A meu ver esta não é a questão. No meu entender, o que merece análise não é propriamente o direito de nascer ou não, mas saber se a criança deve ser deixada na dependência dos pais para eles poderem ser indenizados em nome próprio ou no interesse da assistência social, ou se deve ela própria pedir indenização ou compensação, para não ter que ficar dependente dos pais ou da assistência social. Eu sou favorável a essa indenização. É a posição defendida na Holanda. Só acho que não se aplica nos casos de reivindicação por dano moral quando está em causa o nascimento de uma criança saudável, mas só o patrimonial. Me parece contraditório pedir uma indenização por dano moral baseada apenas no simples fato de investimento numa criança saudável.
E nos casos em que o homem se submeteu a uma vasectomia ou a mulher tomou uma pílula de farinha, o aborto é autorizado?
De feto saudável, só se for até a 10ª semana. Na Holanda não pode, na Polônia é restringido, mas na maioria dos países da Europa pode. Em Portugal, até a 10ª semana o aborto é permitido desde o ano passado após o referendo.
No caso da criança com alguma deficiência, o senhor defende a indenização por dano moral?
Sim, neste caso eu acho que cabe tanto a indenização moral como a patrimonial. Porque há um dano moral, quer dos pais que terão um filho deficiente, quer da própria criança. Não se quer dizer com isso que era melhor a criança não ter nascido. O que está em discussão não é o ser ou não ser, ou o valor da vida, mas saber como se protege melhor a criança.
Síndromes, como a de Down, também se encaixam nesses casos?
Sim, porque neste caso a falha genética que levaria a essa deficiência não teria sido identificada no pré-natal. Nos casos em que o aborto pode ser feito, o procedimento é feito em hospitais públicos e é pago pelo governo.
No Brasil, a nossa Constituição ainda penaliza o aborto. Qual a sua opinião sobre a nossa regulamentação?
É uma questão muito discutível. Enquanto juiz do Tribunal Constitucional de Portugal, tive muito acesso a essas questões. Eu entendo que a solução dos prazos, ou seja, o aborto livre a pedido até as dez primeiras semanas, não é constitucional, não respeita o valor da vida. Mas acredito que, seguindo uma indicação médica, como nos casos em que a criança tem uma deficiência, o aborto deveria ser admitido. Acho que a indicação médica é justificável não só nos casos de fetos anencefálicos, mas quando o bebê apresenta outros problemas graves de saúde, quando há estupro, perigo grave de saúde física ou psíquica da mãe. O que se discute agora na Europa é o aborto por indicação econômica ou social, ou seja, a mãe não tem meios. Mas há uma grande objeção, principalmente da Igreja.
Na sua opinião, qual deve ser o desfecho do julgamento do aborto de fetos anencéfalos no Brasil?
Eu não quero fazer previsões, até porque seria deselegante com os juízes do STF. O que eu posso dizer é que essa questão em outros países dividiu os tribunais. Por isso, eu ficaria espantado se aqui houvesse uma votação unânime. Eu considero o caso dos anencéfalos extremo e acredito que a maioria dos tribunais europeus nesse caso aceitaria a interrupção da gravidez.
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Colaborou Andréa Morais



