
Toda vez que era preciso engomar os hábitos de freiras e padres, a clara era separada da gema do ovo para dar vigor às roupas eclesiásticas. Esse mesmo processo era usado na produção de hóstias: a clara era ingrediente essencial, enquanto sobrava a gema. Para decantar os pequenos corpos sólidos que ficavam no fundo da garrafa do vinho, antigamente também se usava o ingrediente. Com uma demanda tão grande pela clara, o que era feito com a gema que restava em excesso?Entre os séculos 16 e 19, as freiras enclausuradas dos conventos de Portugal começaram a usar a gema que seria descartada para criar receitas. No início, tudo o que era inventado era bastante espontâneo, até porque as receitas dependiam dos ingredientes disponíveis. Como sobrava muita gema e Portugal recebia açúcar em boa quantidade da colônia brasileira, a tendência foi criar pratos doces. Quem já não ouviu falar do pastel de belém, da barriga de freira ou da orelha de abade? "Não é por acaso que muitos doces portugueses estão relacionados à fé católica", afirma o pesquisador Fabiano Dalla Bona, autor do livro Céu na Boca , que trata do assunto, e professor de língua e literatura italiana da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Portugal foi o maior produtor de ovos da Europa nos séculos 18 e 19 e isso ajudou a impulsionar a produção de doces nos conventos. É até estranho pensar que freiras que deveriam fazer penitência e não se voltar a um dos sete pecados, a gula, se amontoavam na cozinha para produzir doces. Não tardou, para a alegria dos portugueses, que os doces feitos com receitas guardadas a sete chaves nos conventos das enclausuradas fossem às ruas. "A produção começou a ganhar vulto e as freiras decidiram vender parte dela para arrecadar", lembra Bona. Como elas não podiam ter contato com o público, os clientes tocavam a campainha do convento e colocavam o dinheiro em uma pequena porta de ferro que girava. As freiras pegavam o valor do outro lado da porta e no lugar do dinheiro punham os doces.
A produção doceira, como define Bona, foi uma maneira de apaziguar a clausura dessas mulheres. "É preciso lembrar que nem todas as freiras estavam no convento por vocação. Se uma família tinha muitas filhas mulheres, por exemplo, casava-se a mais bonita e as outras eram obrigadas a ir para o convento porque os pais não conseguiam arranjar dote [dinheiro] para todas", diz o professor. "O ingresso à vida monástica era incentivado ainda pela viuvez ou problemas na vida em sociedade, sobretudo pelo fim de algum romance escandaloso e problemático para as famílias."
Como nem todas as freiras estavam no convento por causa da fé cristã, algumas começaram a ter casos amorosos. Um dos mais famosos é o da Madre Paula (Paula Teresa da Silva), que viveu em Odivelas de 1704 a 1768 e foi sepultada no mosteiro. "Ela foi amante do rei dom João V, a quem deu um filho, José. Ficou conhecida como trigueirinha [mulher fácil]. Freiras como a Madre Paula conseguiam se encontrar com amantes porque tinham quartos isolados e especiais nos conventos."
A revelação da falta de vocação religiosa está estampada em muitos dos nomes dados aos doces criados nos conventos. "São nomes apelativos, de sentimentos eróticos e sedutores. Falam de emoções e promessas nem sempre concretizadas como os beijinhos, muxoxos, saudades, agarradinhos", diz Bona. Entre os nomes mais exóticos para a época estão amores da cúria, torta do paraíso, beijo de freira e orelhas de abade. Há também os papos de anjo, as argolas de abadessa e as barrigas de freira.
O fim
A certa "desordem" criada em torno da produção de doces gastava-se mais tempo na cozinha do que com rezas chegou aos ouvidos do arcebispo d. Gaspar de Bragança (por curiosidade, filho de d. João V), que tomou uma medida drástica: proibiu a confecção de doces em 1758. A má-fama dos mosteiros, porém, teve seu ápice quando eles chegaram a virar tema de cantigas populares, por isso no dia 30 de maio de 1834, dona Maria II, rainha de Portugal, mandou extinguir todas as ordens religiosas femininas.
As receitas secretas foram levadas pelas freiras, que começaram a publicá-las. Hoje o reflexo é tão grande que o mundo inteiro tem receitas de doces conventuais portugueses. "Em Lisboa, há uma confeitaria que faz o que dizem ser o melhor pastel de belém do mundo e o dono não divulga a receita para ninguém. Ela teria pertencido a uma freira dos mosteiros de clausura", comenta Bona.
Bacalhau entrou na dieta durante as navegações
Assim como o macarrão, que apesar de ter origem chinesa ganhou fama nas mãos dos italianos, o bacalhau se popularizou pelos portugueses, mas o peixe curado, salgado e seco como conhecemos hoje é criação dos Pirineus (que viviam entre a Espanha e França).
"Os portugueses descobriram o bacalhau na época das navegações. E o peixe agradou porque os navegadores precisavam de um tipo de comida que suportasse longas viagens", explica a autora do livro Os portugueses, Ana Silvia Scott. Hoje o amor ao bacalhau é tão grande que os portugueses criaram confrarias de degustação de pratos feitos com a iguaria. "Mas é importante lembrar que o bacalhau do porto não existe, o nome foi dado porque era um alimento associado aos marinheiros", diz Ana Silvia.
A autoria lembra que em Portugal o bacalhau é tido como o fiel amigo, por estar presente na mesa tanto de famílias mais simples como das mais abastadas. "Na véspera do Natal, o bacalhau é a base de receitas de nove entre dez portugueses."
Além do peixe, os portugueses também criaram muitos pratos feitos à base da carne suína, como os rojões à moda do minho. "O país é de tradição agrícola muito forte, por isso as antigas famílias aproveitavam a matança de porcos para criar pratos diferentes", explica Ana. Outra curiosidade está relacionada ao prato típico de nome tripas à moda do porto. Diz a tradição que, quando os portugueses saíram para a conquista do norte da África, quem ficou no país deu tudo de melhor para os que partiram. Quem permaneceu teria ficado apenas com as tripas de porco, que teria dado origem ao prato.
Foi a partir da imigração dos portugueses que a culinária se popularizou. "A globalização também teve papel importante, porque antes dela os portugueses tinham uma certa resistência em aderir aos pratos de fast food, por exemplo", comenta Ana.
Serviço:
Doces portugueses como os que ilustram esta página (na sequência pastel de belém, rolo queimado, pastel de santa clara e pastel de coimbra) podem ser encontrados em Curitiba na confeitaria Delícias de Portugal. Endereço: Avenida Sete de Setembro, nº 4681. Telefone: (41) 3029-7681.
Leia mais
Vejas algumas receitas de doces portugueses no endereço eletrônico www.gazetadopovo.com.br/blogs/blogvidaecidadania



