
Se a dispersão da espécie humana pelo planeta levou ao surgimento de uma imensa diversidade linguística, a globalização está levando ao caminho inverso. As dez línguas mais faladas do mundo mandarim, inglês, híndi, espanhol, russo, árabe, bengali, português, polinésio e japonês são usadas por cerca de 60% da população mundial. Enquanto isso, estudos da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) estimam que 3 mil idiomas estão em via de extinção. Desses, 2,5 mil foram identificados, listados e mapeados no Atlas das Línguas em Perigo do Mundo. O Brasil é o terceiro país em quantidade de línguas ameaçadas: 190. Desde o Descobrimento, cerca de 1,3 mil idiomas foram extintos no país.
A aproximação das pessoas por meios de comunicação como a televisão e a internet é apontada como a grande responsável pela padronização cultural. "Não deixar as línguas indígenas morrerem é um desafio muito grande", avalia a coordenadora de Cultura do escritório da Unesco no Brasil, Jurema Machado. "Grande parte tem poucas chances de sobrevivência, pois essas línguas são faladas apenas por adultos e idosos, que não as ensinam às crianças." De acordo com o Atlas, 33 idiomas idiomas indígenas são falados por grupos de até 10 pessoas.
A repressão foi a causa do desaparecimento da maior parte das línguas extintas no país ao longo dos últimos cinco séculos. No século 18, durante o reinado de dom José I, o governo do marquês de Pombal proibiu o uso da língua geral, espécie de língua franca que servia para a comunicação entre os colonos portugueses, os escravos e índios de diversas tribos. O tupinambá, também chamado de tupi, que era a base da língua geral, também acabou sendo extinto, embora muitas de suas palavras tenham sido incorporadas ao léxico português.
Jurema lembra que a repressão também foi implacável contra as línguas de imigração, notadamente as línguas de países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial. "Muitas dessas línguas guardavam conhecimentos e tradições desaparecidos nos países de origem", afirma. "Eram dialetos e formas que não existem mais na Europa, como o pomerano, dialeto alemão que ainda é falado em alguns municípios do Espírito Santo." O pomerano também é falado por 88% dos habitantes de Pomerode (SC). Há ainda dialetos que se desenvolveram no Brasil, como o talian, variante da língua vêneta falada na serra gaúcha.
A repressão ainda impediu o ensino dos idiomas dos imigrantes nas escolas públicas. "Isso gerou graves problemas de aprendizagem", conta Jurema. "Os filhos de imigrantes usavam uma língua em casa e outra na rua. As crianças não conseguiam ser alfabetizadas corretamente, pois as famílias não podiam ajudar por falta de conhecimento do português."
Dominação cultural
Para o professor Caetano Waldrigues Galindo, do Departamento de Linguística, Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), língua é "quase sinônimo de povo". "A extinção de uma língua é quase que obrigatoriamente corolário da extinção de um povo, seja em termos diretos povos massacrados, eliminados seja em termos, digamos, culturais, com um povo totalmente assimilado ou descaracterizado e, nesse caso, passando a utilizar outro idioma", afirma.
Abandonar a língua materna poderia ser ainda uma forma de renegar o passado. "Pode existir em diversos momentos inclusive um movimento algo ativo de esquecimento de um idioma, na medida em que gerações mais novas vão se mostrando mais e mais integradas a qualquer que seja a cultura agora dominante e passam a demonstrar menos interesse na manutenção cada vez mais artificial e, do seu ponto de vista, retrógada, de valores, culturas, marcas e idiomas de um mundo a que não fazem mais questão de pertencer", afirma o professor. "O idioma pode passar a subsistir apenas como memória infantil de um grupo e na mente de poucos falantes idosos, sobreviventes de outros tempos."
Caetano compara a morte das línguas à extinção das espécies. "Ela não é menos natural que a extinção de grupos animais, nem, às vezes, menos criminosa", avalia. "Os casos mais lamentáveis são os das línguas que não deixaram textos, registros. Se o dalmático, uma língua parente latina, como que um elo perdido entre o italiano e o romeno, desapareceu no século 19 sem ter sido descrito, imagine o caso de centenas de línguas de que temos apenas notícia fragmentária, línguas que pertenciam a troncos diversos e afastados do indo-europeu, que podiam ter características inéditas e interessantes."
Nem sempre a dominação pela força significa a destruição de um idioma. "Houve na história casos de povos que, embora conquistadores, acabaram por abandonar sua língua em contato com povos conquistados que foram percebidos como superiores culturalmente", lembra o professor Carlos Alberto Faraco, professor aposentado do Departamento de Linguística da UFPR. "É o caso dos povos germânicos que invadiram o império romano: progressivamente foram abandonando suas línguas e passaram a falar latim. Assim, contribuíram para o desenvolvimento das línguas românicas modernas."
Segundo Faraco, um idioma pode ser considerado extinto quando resta um único falante, o que já impede que ela seja usada como instrumento de comunicação. A octogenária Boa Sr, que morreu no início do mês passado nas Ilhas Andamão, na Índia, era a última pessoa a dominar o idioma bo, que teria cerca de 65 mil anos. "A língua bo, portanto, já estava extinta bem antes da morte de sua única falante", conclui o professor.



