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Língua

Gramática: 2,6 mil anos de história

Entrevista com José Borges Neto, professor do Departamento de Linguística da UFPR

“A gramática de Dionísio era adequada para a época em que foi feita, porque sintetizava o pensamento linguístico alexandrino. Havia uma posição, antigamente, de que língua e pensamento eram uma coisa só. Hoje, contudo, não podemos aceitar mais isso.” | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
“A gramática de Dionísio era adequada para a época em que foi feita, porque sintetizava o pensamento linguístico alexandrino. Havia uma posição, antigamente, de que língua e pensamento eram uma coisa só. Hoje, contudo, não podemos aceitar mais isso.” (Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo)
Veja as semelhanças das definições atuais das gramáticas com as de Dionísio |

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Veja as semelhanças das definições atuais das gramáticas com as de Dionísio

Consulte uma gramática e responda às perguntas: o que é um substantivo? Um verbo? Um pronome? Essas definições que se aprendem em sala de aula foram criadas aproximadamente 100 anos antes de Cristo. O autor foi Dionísio Trácio, que deu o nome às regras da língua de Tékhné Grammatiké, o que mais tarde convencionou-se chamar de gramática. A maior parte do trabalho de Dionísio se perdeu após um incêndio na Biblioteca de Alexandria. Sobraram apenas 25 páginas que comprovam que a definição atual da morfologia do português e de todas as outras línguas – como verbo, substantivo e predicado – tem cerca de 2,6 mil anos.

"Dionísio criou uma teoria científica de como funciona a língua, seja ela alemã, portuguesa, inglesa. Pode-se dizer que hoje essa teoria do século primeiro antes de Cristo é a única que se mantém em vigência", afirma o professor do Departamento de Linguística da Universidade Federal do Paraná (UFPR) José Borges Neto. Talvez nenhum físico, químico ou biólogo tenha conseguido tal proeza: até a classificação de Plutão, como o último e nono planeta do sistema solar, já foi alterada – ele foi rebaixado para a categoria de planeta anão.

Como, então, Dionísio conseguiu resistir ao tempo e estar, mesmo que indiretamente, presente na vida das pessoas que aprendem e usam as regras gramaticais atualmente? Em entrevista, Borges explica a história da gramática e comenta aspectos que rendem fervorosas discussões como, por exemplo, a possível extinção da própria gramática.

O que é a teoria de Dionísio e por que ela resiste até hoje?

Ela foi criada como uma referência para que as pessoas pudessem ler os textos. É uma análise do discurso. A teoria mostra quais são as partes da língua e como elas podem ser classificadas. Dionísio criou a gramática que pode ser aplicada a todas as línguas: o que é verbo no alemão é também no inglês e no português. Com o passar do tempo, muda-se o foco, a língua objeto de estudo, mas a teoria se mantém.

Qual o problema de usarmos, até hoje, um entendimento científico tão antigo?

A gramática de Dionísio era adequada para a época em que foi feita, porque sintetizava o pensamento linguístico alexandrino. É resultado de um modo de entender a natureza e a realidade. Havia uma posição, antigamente, de que língua e pensamento eram uma coisa só. Hoje, contudo, não podemos aceitar mais isso. Eles associavam as palavras às ideias. Você junta diversas palavras em uma oração e cria um pensamento completo: era assim que o homem do século primeiro antes de Cristo pensava. Se hoje tentarmos usar essa metafísica, vamos encontrar problemas seríssimos, porque não há como trabalhar cientificamente com a noção de ideia, até porque é algo interno.

Nunca houve uma tentativa de mudar a gramática?

No século 19, por exemplo, os lógicos perceberam que a lógica antiga não funcionava mais – era insuficiente para dar conta de um conjunto de fenômenos. Tanto que a lógica de Aristóteles foi abandonada para se criar uma nova, chamada de Matemática. Infelizmente, isso não aconteceu com a gramática. Alguns estudiosos tentaram "consertar" a gramática tradicional, porque ela teria problemas de definição. Procuraram novos conceitos, mas nunca falaram em largar mão da análise tal como ela foi feita por Dionísio. Esse tipo de tentativa aconteceu na década de 30 do século 20. Porém, logo foi abandonada. Só na década de 40, com a chegada dos primeiros linguistas, é que se fala em tentar fazer uma nova teoria e não remendar a antiga.

Tudo o que está na gramática hoje é consequência da teoria criada por Dionísio?

Existem dois aspectos: o descritivo e o normativo. O primeiro surge a partir da criação de uma teoria da linguagem, que vem para descrever algo. Você cria uma teoria assim como o biólogo faz para dizer que isto é árvore e aquilo é mato. Dionísio diz o que é nome (substantivo) e o que é verbo. É a classificação e descrição. O outro aspecto é de que a língua correta é aquela que está nas gramáticas, é a língua dos antigos. Por isso a ideia que se tem de que, com o passar do tempo, as pessoas não sabem mais ler, escrever e falar direito. É o viés normativo: tentar resgatar o bom grego, o bom latim, o bom português. Estas duas concepções estão na gramática de Dionísio e duram até hoje.

O senhor é a favor de mudar a gramática?

Totalmente. Você tem na gramática que nome é algo que designa um ser, um corpo ou algo abstrato. Afinal, o que é um ser?

Mas a mudança não causaria uma reviravolta no modo de ensinar o português?

Quando Einstein propôs a Teoria da Relatividade, alguém pensou que os professores, os alunos e os pais dos estudantes teriam problemas para entender a nova teoria? Um físico não pensa nisso, simplesmente faz. Os professores devem usar os livros didáticos para ensinar a nova teoria (que pode surgir) e esquecer a antiga.

O uso da gramática de Dionísio até hoje, explicaria o insucesso dos professores em tentar ensinar o português (e outras línguas)?

Os professores não conseguem ensinar gramática porque ela é ilógica – para um homem do século 21, tem um monte de coisa agrupada ali que não faz sentido. A análise sintática, por exemplo, não tem mais sentido porque não é lógica. Não sabemos explicar o que é uma oração subordinada e não temos como saber. As noções desapareceram com o tempo. E o aluno percebe rapidamente isso - ele faz o que tem de ser feito: decora algumas regras para a prova e depois esquece tudo.

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